domingo, 21 de janeiro de 2007

Afinal, o aborto é a favor ou contra as mulheres? (Não se pode ter meninas.)


Virar a página ("Público" - 19 setº 2006)

Há poucos meses, numa visita oficial, passei à porta de uma empresa que tinha um cartaz que dizia: "Determinamos o sexo do nascituro às oito semanas de gravidez"... aos dois meses, portanto. Fiquei a pensar no anúncio. A que propósito seria comercialmente interessante um exame para determinar o sexo do bebé às oito semanas de gravidez? Exame que, para mais, comporta riscos para a própria gravidez. Não era fácil imaginar uma futura mãe a dedicar o seu interesse ao enxoval ou a escolher o nome do bebé nesta fase. Todas sabem, basta ler um livro para grávidas, que tudo isso só faz sentido depois dos três meses, quando as coisas estão mais sólidas e se pode finalmente anunciar à família e aos amigos a boa nova. Qual é, pois, o interesse duma empresa em tornar comercialmente acessível às oito semanas o sexo do bebé? Só há uma resposta: a possibilidade de a mãe ou o casal escolherem o sexo do bebé. Não consigo ver outra "utilidade" na coisa.

Desde o dia em que percebi que é tecnicamente possível determinar o sexo do filho que se vai ter às oito semanas, mais me questiono com a possibilidade de o aborto vir a ser livre, e feito nos hospitais simplesmente a pedido da mulher, até às dez semanas de gravidez, como pretende o PS com o seu referendo. Ora, a questão que se vai votar é essa mesma. Desde o dia em que vi aquele cartaz – cujo folheto promocional conservei –, não posso deixar de pensar nas pressões sobre uma mulher grávida, do segundo ou do terceiro filho, para que obtenha o almejado "casalinho", e aborte ou não consoante o resultado da análise...

Mas a questão do aborto liga-se antes às condições e razões que levam uma mulher a fazê-lo, num acto de desespero perante a insuportabilidade da gravidez. Em 1983, quando apresentei uma proposta que legalizava, pela primeira vez em Portugal, em certas condições e em casos extremos, a interrupção voluntária da gravidez, vivíamos num país diferente, onde a imensa maioria das mulheres em idade fértil desconhecia e não tinha acesso a nenhuma forma de planeamento familiar, e que tinha os filhos que ia tendo, e fazia desmanchos quando já não podia ter mais. E fazia-o quer na despensa de uma curiosa, quer pagando bom dinheiro a uma parteira improvisada, que usava normalmente os instrumentos necessários surripiados do hospital onde trabalhava. E, não raras vezes, esta era a única forma de contracepção que muitas mulheres conheciam.

Hoje, vivemos num país em que toda a gente tem livre acesso ao planeamento familiar, às pílulas do mês, do dia anterior, do dia seguinte, ao DIU, ao preservativo vendido na rua, nas estações de metro, nos lavabos. Aquele Portugal das mulheres com dez filhos, sem possibilidade para dar de comer a mais uma boca, só existe muito, muito, residualmente. Hoje, por exemplo, sabemos que, quando uma mulher tem mais de três filhos e mais de 35 anos, é aconselhada, nas maternidades e nos centros de saúde, a laquear as trompas. E pode fazê-lo gratuitamente. Os casos extremos e dramáticos já se encontram previstos na lei portuguesa – que é em tudo semelhante à lei dos outros países europeus. Porquê então legalizar o aborto, tornando-o livre até às dez semanas, feito apenas a pedido da mulher, em meio hospitalar? Sabe-se, por exemplo, que nos países onde as menores precisam de autorização dos pais para fazer uma IVG, têm muito mais cuidado e usam anticoncepcionais, evitando o aborto... Porquê livre até às dez semanas?

O PS transformou o aborto numa bandeira de luta, num direito cívico, e coloca o sim e o não no referendo como sendo a fronteira da modernidade. Não percebeu que, hoje, o que move a modernidade, o subversivo, é exactamente o inverso: a coragem de, contra tudo e contra todos, ser mãe e pai. O aborto, o desmancho, foi um passado de dor e mágoa de tantas mulheres que mais não conheciam e mais não podiam. Pretender agora, no século XXI, que o Estado português banalize o aborto como método normal de contracepção é abrir portas de ordem ética que nenhuma razão pode justificar. E quando as pessoas recorrerem ao aborto legal e de direito para escolher o sexo do filho, como é? Pergunta-se antes: "Vem cá para escolher o sexo do bebé, ou por um direito seu?" Quando se procura legislar contra as regras éticas básicas, arriscamo-nos a ser surpreendidos pela força da realidade que geramos...

Mas também nada justifica que tudo continue na mesma se ganhar o não no referendo que se anuncia. Ciclicamente, assistimos ao caso de mulheres levadas a tribunal por crime de aborto em julgamentos absurdos, que são inexistentes noutros países cuja legislação é rigorosamente igual à nossa.

É chocante saber que, como aconteceu em Aveiro, polícias da Judiciária andaram dois meses, a mando do Ministério Público, a fiscalizar mulheres à porta de um consultório médico! Conseguiram apanhá-las, parece, e levá-las ao banco dos réus. E embora tenham sido absolvidas, o Ministério Público (como se não tivesse mais com que se preocupar!) conseguiu uma condenação no recurso que interpôs. É urgente travar o Ministério Público e toda esta gente, aprovando uma medida legislativa, sem banalizar o que não pode nem deve ser banalizado. O ponto final nestes julgamentos tem de facto uma solução jurídica que não é muito complicada e que ponha um travão no Ministério Público (conforme se prevê na proposta do Prof. Freitas do Amaral, na das deputadas socialistas Rosário Carneiro, Matilde Sousa Franco e Teresa Venda, na proposta de Alexandra Tété e Pedro Vaz Pato, ou na que eu própria elaborei).

Abrir a legalização de todo o aborto a simples pedido da mulher não pode senão fazer-me recordar uma situação que testemunhei pessoalmente e de que guardo a mais trágica recordação. Em 1986, enquanto dirigente do PCP, fui de férias para a então União Soviética. Grávida do meu filho mais novo, comecei a ter problemas na gravidez. Fui internada em Moscovo, no hospital da nomenclatura. Dois dias depois, consegui seguir com o pequeno grupo para Ulianov (a terra onde nasceu Lenine), como estava previsto. Mas recaí doente e fui internada de urgência num hospital a cair de velho e sujo, como só conhecia de filmes da grande guerra. Fiquei numa enfermaria gigante, cheia de camas com mulheres, tão cheia que as camas se tocavam. A dor daquelas mulheres, a quem faziam abortos sem anestesia, que ficavam na cama umas horas antes de serem mandadas para casa, deitadas em lençóis que nunca vi serem mudados, ficou-me para sempre na memória. O seu choro, os gritos lancinantes de dor de abortos a sangue frio, tudo aquilo era uma verdadeira descida aos infernos! Eu sabia que nos países de Leste não havia nenhuma forma de contraceptivos, porque, ainda na clandestinidade, mandávamos para as mulheres portuguesas que trabalhavam nas rádios ou noutros serviços do Partido Comunista caixas de pílulas, remessas de contraceptivos. Lembro-me de ter encontros com um delegado de propaganda médica, só para receber amostras e enviá-las para lá. Mas nunca imaginei na minha vida ver alguma vez tamanho sofrimento e dor, pelo que, em 1989, quando fui a Moscovo em plena Perestroika, participei com gosto numa manifestação feminista de mulheres russas que exigiam o acesso ao planeamento familiar e o fim daquele drama – o fim do aborto como método contraceptivo.

Custa-me ver que, vinte anos depois, continuamos a falar do aborto e a legislar como se as alternativas fossem as mesmas. E, pior, que continuemos a fingir que o recurso a um aborto é uma coisa comum, banal e mesmo um direito. A verdade é que todo este fingimento nunca retirará de mulher alguma a dor do sentimento de culpa. Mulher nenhuma consegue interromper uma gravidez sem sentir, física e psicologicamente, que interrompeu o ciclo normal de uma vida, daquele que seria um seu filho. Será preciso que a sociedade lhe aponte ainda um dedo acusador? Poderá ela ser sentada no banco dos réus? Não seremos capazes de compreender as atenuantes do desespero que a conduziu? Nem o bom senso nem a Lei permitem tal coisa em nenhum outro país europeu com legislações similares – a não ser Portugal.

Devemos desde já assumir (todos os deputados a título individual que o
desejem) o compromisso de alterar a lei em vigor, para impedir não só os julgamentos da mulher, como a publicidade do seu nome na praça pública, que me parece uma condenação inexpiável.

Devemos também assumir o compromisso de agir directamente sobre as causas que, actualmente, empurram as mulheres para o aborto, que não são, certamente, as mesmas que eram há 20 anos. Já não se trata aqui da pobreza ou miséria, ou ignorância. Trata-se de mulheres jovens que sentem o nascimento de um filho como o desmoronar de um futuro que lhes parece urgente e indispensável. Não deixar que isso aconteça, não deixar que nenhuma mulher sinta que o futuro lhe é roubado por ser mãe é, esse sim, o maior desafio que temos pela frente, e que teimamos em não encarar. Infelizmente, parecemos continuar sempre e só no aborto, quando é absolutamente necessário virar a página para a vida.

Zita Seabra, Deputada do PSD

"Público" 19 de Outubro de 2006

2 comentários:

João Santos disse...

Contribui para o esclarecimento dos leitores do blogue

pedro almeida disse...

Excelente escolha, mais uma vez*