sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Ordens e desordens

Há um texto de Joaquim Azevedo que me pôs a pensar sobre as "ordens" e "desordens" do nosso ensino. Gostaria de partilhá-lo aqui:

Ordem e desordem na educação escolar

Abraço o tema que me deram para este colóquio como mais um desafio a pensarmos em conjunto os problemas da educação escolar, problemas estes que mais uma vez, esta semana, motivaram páginas e páginas dos jornais, por razões que só aumentam as nossas preocupações. Permitam-me que desenhe a minha reflexão através de palavras escritas e em pinceladas muito soltas e diversas, na tentativa de compor um mosaico largo e complexo, corolário de um problema já de si imensamente complexo.

1. Para começar: a educação escolar transborda de ordem. Desde logo a ordem que lhe confere o sistema educativo mundial, essa presença as mais das vezes invisível que normaliza e marca o tempo e o modo dos sistemas educativos locais, em qualquer parte do mundo. Uma ordem que se transmite através de organizações mundiais, (basta lembrar a OCDE e o seu PISA, cujo relatório acaba de ser mundialmente divulgado, com enorme impacto na formação da opinião, das mentalidades e das aspirações!) (poderíamos falar da UNESCO e do Conselho da Europa, mas bastaria referir o Conselho de Ministros da Educação da União Europeia e os grandes programas da Comissão Europeia, para vislumbrarmos até onde perfura a inculcação de uma dada ordem na educação escolar e na formação profissional) e que se propaga através de redes internacionais de peritos, de conferências e seminários, através de publicações científicas, da elaboração e divulgação de estatísticas internacionais,

2. Uma ordem mundial que se combina com uma ordem nacional, os chamados sistemas educativos nacionais, para cujo desenvolvimento tanto contribuiu e contribui esta ideia-chave de criar cidadãos de uma dada nação, unidos em torno de uma história comum, de uma língua, de uma visão do mundo, de uma identidade cultural, participantes no seu desenvolvimento, nas suas múltiplas facetas. É esta ordem nacional que subjaz, sem que seja contestada, a toda a organização e gestão das escolas, de cada escola, através de normas que tudo orientam, que tudo prevêem, que tudo pré-determinam (são as leis, os decretos-lei, as portarias, os despachos normativos, os despachos, as circulares e os ofícios interpretativos! No Norte de Itália há um despacho sobre os tons de voz mais adequados em cada caso, em função do tipo de alunos que se tem por diante!) As normas tudo securizam, nada acontecerá que não tenha sido já previsto em normativo adequado, dão a máxima confiança a quem dirige e a máxima segurança a quem executa!... (engano dos enganos!) A ordem da administração a priori é a maior e mais pesada de todas as ordens, no quotidiano das nossas escolas. Com tanta ordem nada de desordenado acontecerá!

3. A ordem prossegue através dos planos de estudo e dos programas, aprovados e prescritos para cada ano de escolaridade, do 1º ao 12º. (existe mesmo uma corrente que quer determinar a escolarização da educação pré-escolar, impondo planos de estudo obrigatórios e nacionais!)

4. A ordem exerce-se também através do controlo permanente de zelosos e numerosos funcionários, na administração central e na administração regional, que têm como missão principal verificar a conformidade com a referida norma. São aos milhares, num país tão pequenino! A conformidade deve estar mais que garantida! A norma deve estar a ser super-respeitada, a lei está a ser cumprida. Podemos estar sossegados!

5. E há ainda a ordem das campainhas que tocam a cada hora ou a cada 90 minutos (a nova ditadura do tempo escolar!) a ordem das aulas previstas, dadas e assistidas (os PDAs) o aulário em que transformamos a educação escolar! A ordem das reuniões dos Conselhos de Turma, das pautas afixadas, das classificações dadas e dos anos lectivos acabados. (e logo recomeçados, neste modelo fabril, taylorista, muito bem ordenado!)

6. E que dizer da ordem dos “rankings” das escolas secundárias, no fim de cada mês de Agosto de cada ano? Aqui temos a ordem das ditas “boas escolas” e “más escolas”, uma ordem profundamente impregnadora de conceitos e indutora de procedimentos que obedecem à ordem do seriar escolas em função dos resultados dos exames nacionais dos alunos do 12º ano. uma ordem que ordena o que cada escola pública estatal deve fazer para o próximo ano, a saber: - seleccionar mais alunos à entrada no 10º ano, para que não lhe calhem em sorte muitos “incapazes”; - selecionar e reprovar fortemente os alunos no 10º ano para que os “incapazes” que ainda sobrarem sejam finalmente “delitados”; -reprovar de novo e ainda no 11º e 12º anos, limpando a eira dos resquícios do joio; -rejeitar cada vez mais os cursos tecnológicos porque com eles correm-se sérios riscos de atrair “gente muito fraca e mal preparada”). Que ordem poderosa, a ordem dos “rankings”, que penetra devagarinho, ano a ano, mês a mês, nos procedimentos de administração, nas práticas de gestão das escolas e nas cabeças dos pais e nas mentes e hábitos dos alunos? Já teremos pensado sobre que ordem é esta?

7. E há ainda a ordem das cadeiras e das mesas, a ordem de organizar as escolas para o ensino expositivo, em função da centralidade quase exclusiva do acto de ensinar, uns meninos atrás dos outros, a ouvir, concentrados no dito ditado (eles que aprendam, que façam os trabalhos de casa, que arranjem explicadores se quiserem ter melhores notas!) a actividade dos alunos é substituída pela passividade ordeira, ouvir, ouvir, conhecer!
As escolas não são locais de trabalho activo dos alunos, mas de convite permanente ao cruzar os braços e deixar voar a cabeça, são mesmo locais caros e imensamente improdutivos!.

8. Podemos prosseguir com o ordenamento do lugar dos pais na escola. Geralmente muito apregoado como decisivo, este lugar é hiper-controlado, legislado, concretizado em Associações de pais (de preferência para colaborar com o Conselho Executivo naquilo que este disser) em Assembleias de Escola, (sempre em minoria, para não desequilibrar a ordem dos professores ordenarem as escolas) em participações esporádicas em Conselhos de Turma, em Conselhos Pedagógicos (eles sabem lá o que dizem, não conhecem a legislação, falam como se isto fosse tudo fácil!) (afinal o que é que padeiros e motoristas sabem de educação para vir aqui falar? fui eu interpelado em Arcos de Valdevez por um professor muito cioso!). A retórica sobre o lugar dos pais nas escolas é uma e as práticas são outra coisa: horas de atendimento dos pais em cima dos horários de trabalho, atitudes de menosprezo das suas opiniões pelo facto de não serem tecnicamente fundadas, etc. (não são da ordem da escola, está tudo dito!)

9. Há muito mais ordens. Por exemplo, a ordem na distribuição do serviço docente, no início de cada ano lectivo. Que critérios presidem à atribuição das turmas, dos cargos de direcção didáctica, de orientação pedagógica, de acompanhamento dos alunos? (eu quero a sexta livre e a segunda de manhã!) (já sabes que dou explicações e que preciso das tardes todas livres!) (esta aqui tem o horário incompleto, o melhor é ficar com duas direcções de turma e já está!) (ó colega, tu ficas com a turma G, que tem muitos repetentes, és nova, tens sangue na guelra e vais tomar conta deles!) (eu quero as turmas A e B, alunos de secundário e horário da manhã, já sou velha na casa, são direitos adquiridos!) Esta é outra ordem, tantas vezes escondida, que determina em muito a qualidade do trabalho dos professores, a qualidade do ensino e das aprendizagens, uma ordem de que não se fala, não vá alguém fazer perguntas impertinentes!

10. E para terminar, a ordem do ensinar. Os professores ensinam e os alunos aprendem, é a ordem, cada um como pode e sabe, uns com a cabeça na neve, outros com os olhos na cena do filme que viram ontem, uns com a mente nas chatices que tiveram com os pais por causa das notas, outros a ouvir o relato apressado da professora. Umas 25 viagens diferentes realizadas por 25 passageiros, por percursos e com destinos diferentes, enquanto uma professora ensina (setôra mas o Carlos tem um problema!) (aqui não há tempo para tratar de assuntos pessoais, temos de dar o programa e agora há exames nacionais! Falamos lá fora, no intervalo!) A professora ensina, a ordem é o ensino! E aqui terminam as notas da ordem. Apressam-se as da desordem:

11. A aprendizagem é a primeira desordem. Esta é a primeira e principal desordem escolar: os alunos são diferentes, cada aluno é uma pessoa, única e irrepetível, um cérebro, um corpo e uma mente únicos, com características diversas, com modos de ser e estar diferentes, com aspirações desencontradas, com experiências familiares o mais diversas! Mas, a ordem escolar aí está para resolver as dificuldades: todos são tratados como um só! O grande problema escolar fica assim resolvido, ou seja, tapado.

12. A segunda desordem são as escolas: tanto trabalho a ordená-las, a controlá-las e a colocá-las segundo a norma instituída e elas, ingratas, são tão diferentes. Diferentes no modo como são dirigidas, diferentes nos seus alunos e nos seus professores, tão diversas nos seus resultados, (com os mesmos planos de estudo, os mesmos programas, as mesmas leis, como é que isto é possível? grita alguém na 24 de Julho!) diversas no que se chama o “clima da escola”. E ele há tantos climas escolares! tanta diversidade de climas escolares!

13. A terceira desordem são os contextos escolares: cada aluno vem de uma família diferente, vive num local diferente, todos os anos mudam os alunos da escola, (e cada vez estão piores!) há escolas que recebem alunos de meios económicos e culturais elevados e “escolas de pretos”, na periferia de Lisboa, de onde fugiram os autóctones, os brancos, a classe média, essa que se dá melhor com a escola, há escolas degradadas (poucas) e escolas novas (muitas), com muito boas condições de trabalho, há escolas envoltas em ambientes culturais vivos e activos, onde estudar até parece uma respiração da cidadania, há escolas imersas em ambientes que rejeitam a cultura escolar e valorizam apenas o trabalho, o assalariato como forma de vida e de ascensão social. (que coisa mais triste esta de haver escolas tão diferentes, quando as leis são tão iguais para todas elas e ainda por cima tão pormenorizadas, quando há tantos funcionários a darem orientações tão claras!)

14. Outra desordem encontra-se no cumprimento das normas. Cada uma acaba por fazer o que quer, cumpre a lei como pode, inventa uns procedimentos de adaptação à norma, para fazer de conta que a norma é integralmente cumprida, (segundo a lei todas as escolas são autónomas, desde 1998, mas nenhuma escola tem autonomia nem age com autonomia) e assim a administração crê que a norma se cumpre porque das escolas se diz que tudo está conforme, apesar de o fazerem numa miríade de tipos de conformidade! ! Os inspectores certificam a conformidade e quando alguma escola ousa adaptar demasiado alguma norma, lá é obrigada a voltar à normalidade, em nome da norma e não dos pressupostos e dos objectivos que umas dezenas de técnicos superiores qualificados decidiram determinar por si mesmos, diante da situação concreta e procurando o melhor para os seus alunos.

15. Em conclusão: A ordem é o ensino, A desordem é a aprendizagem. A ordem é o ensinar, A desordem é o aprender. A ordem é trabalhar com os alunos como se eles fossem um só. A desordem é que eles são todos únicos, cada um é diferente, é trabalhar com cada um como se ele fosse único. A ordem é o aluno e a turma A desordem é a pessoa que mora em cada aluno. A ordem é cada professor ensinar o mesmo, em qualquer local do país, A desordem é que os professores são muito diferentes e que os alunos atingem resultados muito diferentes. A ordem é cada escola ser a cópia da outra escola, cumprindo as mesmas normas nacionais, A desordem é cada escola ser diferente. A ordem são os rankings, A desordem são as técnicas para alcançar os melhores lugares. A ordem são as pautas penduradas, A desordem são os abandonos escolares e os futuros comprometidos. A ordem é todos aprenderem o devidamente ensinado, A desordem é que muitos não aprendem nem querem mesmo aprender. A ordem é agressiva, desrespeitadora da diferença. A desordem é tanto a passividade como (de vez em quando) a violência. A ordem não é o tudo A desordem não é o nada, o caos. A desordem é a vida, é assim, é mesmo uma grande desordem. Porque educar é des-envolver, desfazer lentamente o novelo que cada um de nós é, des-envolver para poder vir a ser, a conhecer, a fazer, a viver com os outros. A ordem são as margens A desordem é rio, que por sinal é a vida que corre nas escolas, sempre diversa, sempre nova em cada ser que se des-enreda, que faz o seu próprio desenho, que se ergue perante o bem e o belo, que aprende a compreender as coisas, o mundo a vida, que agarra a herança cultural que lhe transmitem e re-cria a vida e cria novos possíveis. Para esta desordem, só pode haver uma ordem: A ética do cuidar, Do cuidar de cada um como se fosse único e divino, Do cuidar sustentado na crença de que cada ser humano aprende e aprende ao longo de toda a vida, Assim saibamos nós cuidar de cada uma e de cada um, Não deixando ninguém pelo caminho.

Joaquim Azevedo

8. Dezembro. 2004

(http://www.joaquimazevedo.com)

E cada um, pela sua experiência, qual é que acha que são as ordens e desordens do ensino?

Sem comentários: