Por: Frei Bento Domingues, o.p.
1. Não é a primeira vez que, pelo Natal, "o que não é possível põe-se a acontecer". Neste, tive a visita de um amigo que já não via desde 1965. Sabia vagamente que, por razões de trabalho e paixão, continuava a percorrer o mundo. Conversamos. Verifiquei que não era um feirante das religiões. Estava marcado, mas não fascinado, pelas espiritualidades e sabedorias do Oriente.
Ao terminar, em estilo de rajada, quis sintetizar a sua posição para novas conversas: sou religioso e incapaz de deixar de me interrogar. Jesus Cristo é, para mim, absolutamente incontornável. Mas o Deus convencional das instituições religiosas ou das negações ateias irrita-me. A autenticidade religiosa é incompatível com a manipulação da ignorância, do medo, da doença ou da morte. O simplismo positivista é uma seca. A utilização do nome de Deus para a dominação moral, religiosa ou política é repugnante.
Acrescenta: os livros das grandes religiões servem para sustentar tudo e o seu contrário, o bem e o mal. Olhemos para a Bíblia. Tem narrativas, histórias, poemas, provérbios muito belos. Quando, por exemplo, diz que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança para cuidar do mundo como de um jardim, para tratar o outro como irmão (não como Caim tratou Abel), eu não posso estar mais de acordo com essas metáforas acerca de Deus, do mundo e do ser humano. É com esse jardim que vale a pena sonhar. Quando, porém, na Bíblia, um povo coloca, na boca de Deus, projectos nacionalistas, políticas guerreiras contra outros povos, para tomar conta das suas terras, quando exalta matanças «porque eterno é o seu amor», a Bíblia torna-se uma biblioteca de ódio.
Pelos testemunhos mais fidedignos que temos, Jesus de Nazaré, um judeu, quis acabar com esse deus regional, tribal, dominador, humilhação dos pobres e das mulheres: vós sois todos irmãos, como quem diz, tendes de fazer família com quem não é da vossa família, do vosso povo. Mataram-no.
Paulo, um judeu convertido ao caminho de Cristo, incarnou uma autêntica revolução religiosa: Deus não faz acepção de pessoas, povos, culturas ou religiões. A última palavra de Cristo, na cruz, não foi para amaldiçoar os inimigos, mas para lhes exprimir um eterno perdão.
A crucifixão provocou, no entanto, ódios redobrados. E, entre as próprias Igrejas cristãs, o nome de Cristo foi utilizado para elaborar cristologias que as colocou umas contra as outras. O cisma entre as do Oriente e as do Ocidente, as cisões entre as igrejas do Ocidente, que levaram às chamadas "guerras de religião", permanecem. Entretanto, usou-se o slogan de exclusão que trata mal o próprio Deus: «fora da Igreja não há salvação»...
Veio o Islão e considera-se a última e mais perfeita revelação de Deus e o Corão o seu ditado. Deu origem a brilhantes civilizações enquanto não proibiu, em nome de Deus, a livre discussão e a liberdade da criação artística. Continua a crescer, mas não faz crescer a paz nem sequer entre os próprios muçulmanos.
Em suma, diz o meu amigo: todos querem ter a última palavra acerca de Deus e do ser humano e poucos querem seguir o caminho da meditação, da escuta de Deus e dos outros, o caminho dos místicos do judaísmo, do cristianismo e do islão.
2. Devo confessar que não tenho um entusiasmo especial por estas sínteses rápidas e simplificadoras de sinuosos milénios de história. Disse-lhe, no entanto, que não esqueceria esta conversa no dia da Epifania, no chamado Dia de Reis. E porquê? Porque é a festa em que Paulo declara que «os gentios receberam a mesma herança que os judeus, pertencem ao mesmo corpo e participam da mesma promessa» (Ef 3, 2-3.5-6). Por outro lado, a narrativa de Mateus (2, 1-12) mostra que os que procuram a Deus não o procuram só nas instituições religiosas: no templo, na sinagoga, na igreja, na mesquita.
Judeus, cristãos e muçulmanos podem todos dizer que "Deus é amor" e que a paz é o nome das suas religiões. Não devem esquecer, no entanto, que são frases que podem ser ensinadas a qualquer papagaio. Se não tentarem, juntos, vencer os ódios e as guerras, se não voltarem os seus olhos e os seus ouvidos para o mundo das vítimas da fome e da guerra, são cegos, guias de cegos.
3. "Os Três Reis do Oriente", que encerram os "Contos Exemplares" de Sophia de Mello Breyner, são a mais bela expressão poética desta mudança de Deus e da busca humana. Retenho o último fragmento.
«Dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os deuses. E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar: "Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força e o domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses".
«Seguiu o rei para o segundo altar e leu: "Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses".
«Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu: "Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo o espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram".
«E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os sacerdotes: – "Dizei-me, onde está o altar do deus que protege os humilhados e oprimidos, para que eu o implore e adore?"
«Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam: – "Desse deus nada sabemos".
«Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse: – "Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?"
«A estrela ergueu-se muito devagar sobre o céu, a Oriente. O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.
«E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira».
Nesta festa, escutei dois amigos. Um continua à procura do sentido da aventura humana. Peço à Sophia que reze por todos os que procuram o rosto de outro Deus.
(Público)
domingo, 7 de janeiro de 2007
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