sábado, 7 de abril de 2007

Homilia de Quinta-feira Santa do Frei Bento Domingues

Dado que a Eucaristia é a celebração do sacramento do amor, a Liturgia de hoje está cheia de ambiguidades e paradoxos: discute-se se é uma ceia pascal ou não; se é a celebração da instituição da Eucaristia e dos ministérios ordenados ou não; se é só de homens ou também de mulheres; se é de inclusão de todos ou só de alguns; se é uma condenação de Judas ou a sua recuperação; se as mulheres poderão ou não vir a ser chamadas à ordenação presbiteral; se os divorciados recasados também podem ter acesso à Eucaristia; se deve ser em latim ou na língua vernácula; se presidida de frente ou de costas para o povo. Em todas essas discussões pode-se esquecer que já não estamos numa civilização rural, num catolicismo à sombra do campanário, pautado pelos ritmos da natureza e pelo calendário cristão, na sua versão católica. A Eucaristia não pode ter a mesma significação em sociedades oficialmente laicas e de pluralismo religioso, onde abundam crenças e superstições.

Não vou entrar em nenhuma dessas problemáticas. Quero que a nossa meditação nos alerte para o essencial. Uma celebração não é uma aula.

Mas há uma questão, de sempre, sobre a presença real. Nem sempre coincide com a presença real de Cristo ressuscitado na Eucaristia. Como diz a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, nº 7 (Vat. II), várias são as formas da presença de Cristo na Eucaristia. Tomás de Aquino tem uma profundíssima reflexão teológica sobre as formas de Deus estar presente ao mundo e, sobretudo, ao ser humano, e também como o ser humano se pode tornar presente a Deus pelas virtudes teologais. Todas essas questões concentram-se na celebração do Mistério Pascal. (Summa Theologiae I, q.8; 43, 1; 112, 1; I-II q. 4,5; III q. 1,1 ad 1; 2, 6-10; 4, 1; 48, 6; 49; 56, 1 (quae quidem virtus presentialiter attingit omnia loca et tempora).

Deus é a presença mais real: é aquela que, de forma misteriosa, nos infunde continuamente a existência. Por isso, em Deus existimos, vivemos e nos movemos. A realidade desta presença até aos pagãos é acessível, como disse Paulo em Atenas.

Se Jesus Cristo ressuscitado não for o primeiro a chegar – em toda a sua realidade – à missa e a presidi-la, não haverá missa. E isto é muito difícil de reconhecer. Estamos sempre à espera que o padre chegue ou à espera que ele já tenha chegado. Ora, o padre é, apenas, o sacramento – sinal e instrumento se o não atraiçoar – da presidência de Cristo ressuscitado. Não vem substituir Cristo. A “presença real” de Cristo não começa, pois, na Consagração...

Sobre a “presença real”, a primeira questão é esta: estamos, aqui, realmente presentes uns aos outros ou somos irreais uns para os outros? A saudação da paz não é uma garantia. Acontece que saudamos o vizinho do lado, na missa, mas acabada a missa continuamos estranhos. No entanto, não podemos esquecer uma observação que circula há bastante tempo: procurei a Deus e não o encontrei; procurei a minha alma e não a encontrei; procurei o próximo e encontrei os três.
Seremos, fora da missa, presença real aos pobres, aos sem abrigo, aos desempregados, aos emigrantes (ou somos do partido nacionalista)?

Se esses mundos tiverem alguma coisa contra nós – os que vamos à missa – Cristo apressou-se a dizer-nos a reconciliação que temos de fazer.

S. João, que tem um grande discurso sobre o pão da vida, não relata as palavras da Consagração. Substituiu-as pelos gestos do serviço – o lava pés – sem conotação religiosa. Jesus, aliás, não era um grande liturgo.

O que nos torna realmente presentes a Deus – que nos está sempre presente – é a fé, a esperança e a caridade. São os actos destas virtudes teologais que nos tornam presentes a Deus e aos irmãos.

A presença real é impedida pelo pecado. A Eucaristia é, do começo até ao fim, o sacramento da misericórdia, da piedade de Deus. É o sacramento do perdão dos pecados, muito mais do que qualquer outro sacramento. Só essa misericórdia nos transforma, nos “transubstancia” para podermos estar realmente presentes a Deus e aos irmãos. Isto é tão verdade que, na Consagração, dizemos solenemente que a Eucaristia é pelo “perdão dos pecados”.
Toda a celebração deve respirar, nos gestos, nas palavras, no canto, a alegria de sermos perdoados e a alegria de darmos o perdão. A Eucaristia não é de santos, não é um sacramento celestial. É um sacramento da terra, do pão, do vinho e dos trabalhos dos seres humanos. Se excluirmos os pecadores, em processo de conversão, da Eucaristia, estaremos numa celebração de fariseus, de convencidos que saem piores da missa do que quando dela se aproximaram.
A Eucaristia significa a nova aliança de Deus connosco e a nossa aliança de uns com os outros em Jesus Cristo. Não é uma aliança realizada até ao fim. São aliados que caminham, que não chegaram ainda à pátria celeste.

É o sacramento da unidade na pluralidade, uma unidade de pecadores em processo de conversão. É um caminho para a unidade, não o seu termo.

Como dissemos, é Cristo ressuscitado que preside a esta Eucaristia e se entrega a nós como pão de viagem e como vinho da alegria. Nenhuma teoria sobre a “presença real” pode esquecer que estamos não a tratar de física ou de química, mas da nossa transformação pelo dom que ele mesmo faz de toda a sua vida e de todo o seu projecto, a cada um de nós, para que sejamos o seu corpo vivo. A Eucaristia faz a Igreja, faz o corpo de Cristo e o corpo de Cristo, a Igreja, faz a Eucaristia. Somo nós, aqui, reunidos por Cristo, com Cristo e em Cristo, somos nós Igreja, que damos graças a Deus por tudo o que nasce, cresce e se transforma sob a acção invisível de Deus e que celebramos através deste rito pascal.

É Deus que se dá a nós todos e somos nós todos que nos entregamos a ele e à transformação do mundo. Celebramos esta Páscoa entre duas datas exemplares da vida da Igreja no século XX: a Pacem in Terris, de João XXIII (11 de Abril de 1963) e a Populorum Progressio, de Paulo VI (26 de Março de 1967). O impacto destes documentos não desapareceu na exortação Sacramentum Caritatis, de Bento XVI (13 de Março de 2007).

A Eucaristia é pão e vinho para a viagem, é um viático. O nosso quotidiano não pode estar desligado da Eucaristia. A celebração da Eucaristia não pode estar desligada, vazia do quotidiano – em todas as suas dimensões – daqueles que a celebram. O quotidiano de cada um de nós – em todas as suas dimensões – não pode estar desligado da celebração pascal, da celebração de cada Domingo ou de cada dia.

Encontrar a linguagem e o espírito da liturgia é o desafio da confissão da fé. Encontrar a alma do quotidiano, nos afazeres de cada um e segundo os ritmos do tempo próprios a cada cultura, é o desafio da nossa fidelidade ao mundo, ao Evangelho.

2 comentários:

Anónimo disse...

Uma boa Páscoa para ti!

jinho!

sonhadora disse...

Desejo-te uma boa semana. Gostei muito do teu post.Beijinhos embrulhados em abraços