1. Os textos do Novo Testamento têm perto de dois mil anos e podem renascer em qualquer língua e cultura. As versões mais antigas estão escritas em grego – aliás, a própria Bíblia, chamada dos Setenta, também já tinha sido traduzida há muito tempo do hebraico para o grego, em Alexandria. Jesus de Nazaré sabia ler hebraico, mas a sua língua materna, a língua de todos os dias, era o aramaico, a mais falada na Palestina. Dada a situação política e cultural, é normal que ele soubesse alguma coisa de grego e latim. O cristianismo, porém, não tem nenhuma língua oficial ou sagrada.
Não há notícias de grandes viagens de Jesus antes da sua breve intervenção pública. É referida uma passagem simbólica pelo Egipto na infância, uma saída cheia de espanto até Tiro e Sídon e mais nada. As narrativas dos Evangelhos desenham-se numa geografia limitada, embora com certa diversidade de povos.
2. A parábola provocatória, lida em português na Missa de hoje (Lc 10, 29-37), vem depois de uma má recepção a Jesus, na Samaria, a caminho de Jerusalém. Os judeus e samaritanos não se podiam ver. Os discípulos de Jesus, perante a hostilidade dos samaritanos, queriam ir muito além da resposta proporcional: Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os destruir? Jesus repreendeu-os e foram por outro caminho.
O Mestre esperou, no entanto, por melhor altura para dar uma lição exemplar aos discípulos beligerantes. A ocasião foi criada por um jurista fariseu, interessado em deixar Jesus atrapalhado, diante dos seus discípulos: Que farei para herdar a vida eterna? Jesus devolveu-lhe a pergunta: Que está escrito na Lei? Como lês? O perito respondeu: Ama o Senhor teu Deus, com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com todo o entendimento. E ama o teu próximo como a ti mesmo. Jesus comentou: Respondeste bem. Faz isso e viverás.
Este doutor da Lei achou que Jesus estava a ser simplista e insistiu: E quem é o meu próximo? A pergunta não era descabida. Para os judeus do tempo de Jesus, próximos eram os pais, os filhos, os parentes, os da mesma religião e os da mesma raça. Os pagãos não eram próximos e os samaritanos eram inimigos.
O Mestre salta fora dessa hipocrisia com uma história escandalosa que até no Google já vai em 128 mil páginas de comentários. Resumindo: um homem descia de Jerusalém para Jericó. Foi assaltado, espancado e ficou meio morto. Passou um sacerdote, passou um levita – gente do culto oficial – viram-no e seguiram caminho. Um samaritano, um herético, em viagem, chegou junto dele, viu-o, moveu-se de compaixão, tratou-o cuidadosamente, levou-o para uma estalagem e prontificou-se a pagar todas as despesas.
A pergunta de Jesus é simples: Afinal, qual dos três, em tua opinião, foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos assaltantes? Resposta: Aquele que usou misericórdia para com ele. Jesus não gastou mais literatura: Vai e faz o mesmo.
3. A parábola não pretendia concluir que os judeus são todos uma peste e que os samaritanos são todos uns santos. Uma interpretação dessas destruiria a sua eficácia, tanto para os ouvintes de há dois mil anos como para os de hoje. É, pelo contrário, uma diatribe contra a classificação das pessoas, segundo o grupo étnico, político, religioso a que pertencem e, sobretudo, segundo o catálogo dos preconceitos. A questão é deslocada do objecto para o sujeito. Com efeito, a distância que ia do sacerdote, do levita e do samaritano, em relação ao assaltado, espancado e semi-morto, era rigorosamente a mesma. Se o próximo fosse medido por essa distância, o atacado era o próximo de todos. Jesus altera, radicalmente, essa problemática. O sujeito é que tem de se tornar próximo daquele que precisa de cuidados. Próximo é o misericordioso, o compassivo, aquele que o amor desloca.
Não se pode dizer que as imagens dos horrores de fome e de doenças na África e de violência extrema no Iraque e noutras partes do mundo sejam inúteis, embora a sua constante repetição acabe por produzir a indiferença. Por outro lado, as imagens, mesmo as mais horrorosas, são facilmente enquadradas e manipuladas pelos interesses de quem domina os grandes meios de comunicação. Além disso, há gente que adora filmes de violência e de terror. Um campo, aliás, bem abastecido.
Isto não significa que uma informação rigorosa, sobre o estado do mundo, não seja essencial para despertar o sentido e a urgência da solidariedade. Podemos, no entanto, ver tudo isso e muito mais e ficar na mesma. O simples conhecimento deixa sempre o objecto à distância por mais que o aproxime. Só o conhecimento impregnado de amor benevolente nos impele para os outros e nos identifica, afectivamente, com eles. Só o amor pode ir queimando o nosso egoísmo e fazer-nos passar para além da justiça legal. Não é por falta de conhecimento do estado de miséria do mundo que os grandes, quando se reúnem (os dirigentes do G8, por exemplo), chegam a conclusões tão miseráveis. Falta-lhes o que sobrava ao samaritano: a compaixão.
Crónica do Público, de Frei Bento Domingues, o.p.
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