quarta-feira, 19 de setembro de 2007

OS PEQUENOS DÉSPOTAS

Em cada ano lectivo que começa, e está mais um a começar, a minha desmotivação é maior. Sinto-me cada vez mais sem chão nesta sociedade onde o desmoronar de valores chegou ao limite. A instrução que deveria ser dada na escola não faz sentido sem antes ter havido a educação que pertence aos pais e à sociedade. Porque resumir educação a instrução é extremamente limitativo.

Que valores transmite esta sociedade às crianças e aos jovens? Os jovens nascem e crescem numa sociedade onde grassa a mediocridade. Onde o sucesso não está associado ao trabalho. Onde todos se sentem cheios de direitos mas muito poucos olham para os seus deveres. Onde a exigência é uma palavra vã. Onde não compensa ser cumpridor. Onde os bons e os maus profissionais têm exactamente o mesmo tratamento. Onde o crime compensa desde o atestado médico falso ou da fuga aos impostos à irresponsabilidade dos políticos. Os exemplos que as crianças e os jovens vêem à sua volta são lamentáveis e não são minimamente educativos.

Ouvimos os empregadores queixarem-se da falta de preparação dos recém licenciados. Os professores do superior sacodem a culpa para os do secundário. Os do secundário para os do básico. Os do básico para os do primeiro ciclo. E, possivelmente, estes para os pais. Todos têm razão e todos fazem parte do problema e da solução.

O que se tem investido na educação nos últimos 30 anos não tem resultado. Mudar programas e currículos não tem sido mais do que desperdiçar dinheiros públicos. É preciso mudar pessoas. Professores, pais e alunos. Depois do 25 de Abril, assumiu-se que tudo traumatizava as crianças e os jovens. Em casa e na escola. Passaram a ser tratados como uns seres esquisitos susceptíveis a traumas pela mais pequena coisa. Nada lhes pode ser exigido mas eles podem exigir tudo. A palavra não deixou de fazer parte do vocabulário dos pais. Aqueles que ainda ousam pronunciar essa palavra, rapidamente a transformam num nim e depois num sim ou num silêncio permissivo. Quem manda em casa são os filhos. Os pequenos déspotas. Não se lhes ensina que há tempos de trabalho e tempos de lazer. Tudo para eles tem que ser a brincar. As novas pedagogias assim o determinam. As aulas não deviam ser tempos de lazer mas momentos de trabalho. Trabalho sério. A geração do pós 25 de Abril não aprendeu nem conteúdos programáticos nem a mais elementar cultura geral. A geração que hoje anda na casa dos trintas. Geração dos novos pais e dos novos professores.

Os portugueses não dão valor à aprendizagem. Toda e qualquer aprendizagem. As estatísticas mostram que metade dos portugueses não quer qualquer formação ao longo da vida. As crianças crescem a ver e viver isso. Crescem também a não dar valor a nada. Tudo o que têm é-lhes dado. Aparece. Sem mais. Nada é conquistado e por isso nada é valorizado. Quando chegam à escola querem uma aprovação ou uma determinada avaliação sem terem feito o esforço necessário para a conquistar. Em casa têm a televisão, os DVDs, as playstations a que recorrem quando lhes apetece sem qualquer limitação ou regra. Não são habituados, desde pequeninos a ter hábitos de disciplina, de esforço, de trabalho. Sem uma educação exigente não se formam cidadãos competentes. E com cidadãos incompetentes não pode haver uma educação exigente. Estamos num círculo vicioso.

Quando eu era miúda, havia uma prenda no Natal. Uma. À qual eu dava um valor incomensurável. Durante meses o meu brinquedo era explorado até à exaustão. Hoje as crianças têm tantos brinquedos que se limitam a rasgar o papel de embrulho e pôr para o lado para rasgar o papel da próxima que voltam a pôr para o lado. Aos meus netos não dou brinquedos. No Natal e nos anos coloco-lhes na conta aquilo que pensava despender numa prenda. Alguma coisa está mal para que um país pequeno e pobre como o nosso seja um dos que mais gasta em prendas no Natal. Podem-me dizer que os tempos são outros. É verdade. Mas não precisar de se fazer nada para ter tudo, tira o valor das coisas e não é educativo.

Comprava-se uma pasta de couro que durava toda a primária. Hoje têm – exigem – uma mochila, no mínimo, por cada ano escolar. E todo o material escolar tem que ser de uma determinada marca, mais cara evidentemente. Os portugueses não têm a noção das prioridades. Desde o mais humilde cidadão ao mais conceituado membro do Governo. Vemos isso em muitos alunos subsidiados pelos Serviços da Acção Social Escolar que vão para a escola com o seu telemóvel. Vemos isso no que se gasta com coisas não prioritárias nos gabinetes ministeriais ou nas autarquias, ou o que passou com o euro 2004. Os pais deviam explicar às crianças, desde pequeninas, que se tem o que é necessário e não o que se quer.

Tantas vezes fico estupefacta ao ver a maneira como as crianças e os jovens tratam os pais. Não os respeitam possivelmente porque eles não lhes incutiram a noção do respeito pelos outros. Como não lhes incutem o prazer pelo saber. A grande maioria dos jovens não tem interesse pelo saber. Não manifesta qualquer curiosidade intelectual. Quer apenas passar. Querer esse que é partilhado pelos pais.

Para não ficarem comprometidas as gerações futuras era necessário agir já. Exigindo de todos. E se não podemos interferir com o que se passa em cada família, podemos definir o que queremos da escola. Exigindo dos alunos de todas as idades e dos professores de todos os níveis de ensino. É urgente começar a penalizar quem não cumpre.
G.P., Jornal A Vida Económica, Pau de Giz
Agradeço à G.P. a sua permissão para publicar esta crónica no meu blogue. Os negritos são da minha responsabilidade.
A propósito dos assuntos aqui escritos, sugiro a leitura de "O Pequeno Ditador", de Javier Urra. Boa leitura!

5 comentários:

João Santos disse...

4 notas mínimas:

- eu sei, a nível do básico, do que o texto fala;

- há um erro no verbo despender que penso que é "dispender";

- eu já comecei a "chicotear" os meus alunos ("a living hell!");

- e quanto o 1.º ciclo do básico, não põe as culpas nos pais, põe as culpas nos infantários quando reina a indisciplina...

João Santos disse...

Embora reconheça que também os pais dêem pouco ou nenhuma educação aos filhos

Liliana F. Verde disse...

Pode haver alguma confusão entre "despender" e *dispender, por causa da origem etimológica da unidade linguística e da sua evolução fonético-fonológica.

Na verdade, o verbo "despender" tem a sua origem no Latim "dispendere" ("dis" + "pendere").

A confusão é também gerada pela existência da unidade linguística "dispêndio", cuja origem é a mesma de "despender", sendo que "dispêndio" é o acto ou o efeito de gastar, de despender.


*Dispender é uma forma não atestada em Português. Esta informação é comprovada pelo "Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea" da Academia das Ciências de Lisboa:

- "despender" = 1. gastar; 2. consumir algo que é visto como uma matéria cara; 3. aplicar uma energia física ou psicológica na consecução de um determinado objectivo; 4. consumir as suas forças, tempo, energia... com determinado fim; 5. dar ou distribuir em abundância.

Assim, a frase "No Natal e nos anos coloco-lhes na conta aquilo que pensava despender numa prenda." está correcta.



Fico na dúvida:

Se a origem de "despender" é "dis + pendere", por que razão o verbo não se escreve *dispender?

Tento duas explicações:

Devido às alterações fonético-fonológicas da língua.

O "i" evoluiu para "e": o "i" de "dis" é breve e sofreu uma evolução para "e", por ser mais fácil de pronunciar (o que não deixa de ser estranho, pois, em "dispendere", o "i" é longo!). O princípio aqui presente é designado por princípio do menor esforço.

Uma outra explicação, e talvez a mais correcta, é o fenómeno fonético da assimilação. Porque a unidade linguística "dis-pendere" tem já o fonema /e/, o fonema /i/ sofreu uma alteração por assimilação. Não deixa também de ser estranho, pois a assimilação e a dissimilação são processos que ocorrem mais frequentemente com os sons consonânticos e não com os vocálicos.


A nossa língua é tramada, não é?

João Santos disse...

O acima exarado só revelada que o povo é o verdadeiro obreiro da língua lusa, mas não o seu verdadeiro conhecedor. Foi no século XVI que a língua após vulgarização e castelhanização acelerada voltou a entrar nosa trilhos correctos do latim e pode ser que comece uma nova correcção justamente no século XXI. Afinal, e o latim o comprova, o tal verbo "despender"(que deu compreensivelmente "despensa")deveria escrever-se "dispender". Não é a língua que é tramada, mas o vulgo, que a martela a seu belo prazer...

Liliana F. Verde disse...

Se calhar a explicação mais óbvia é mesmo a iliteracia.

Mas se achamos isto estranho, espera para quando entrar o novo Acordo Ortográfico. Há coisas que vão doer...