domingo, 16 de setembro de 2007

SER

EDUARDO PRADO COELHO: O ATEU E O CARDEAL
Anselmo Borges
padre e professor de Filosofia

Aquestão da morte começa por ser a dos outros, para depois passar a ser a da nossa própria morte", tinha dito recentemente Eduardo Prado Coelho. É isso: um belo dia, a morte chega, parte-se, e o mistério todo é que ninguém deixa endereço.
Sobre Eduardo Prado Coelho já muitos falaram. Aqui, fica apenas uma breve referência aos Diálogos sobre a Fé, troca de cartas públicas com o cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, por iniciativa do Diário de Notícias. O próprio patriarca referiu, no dia da morte, a "elevação" do diálogo e como lhe notou, nalgumas passagens da troca epistolar, "uma quase incomodidade pelo fato que estava a vestir, digamos assim, o fato de ateu ou agnóstico militante".
Seria Eduardo Prado Coelho ateu? O que é que isso quer dizer? Ainda é ateu quem diz que inveja "aqueles que têm a evidência de uma fé"? A ele só lhe foi dado "sentir, ou pensar, ou desejar o excesso de algo que no sensível não é apenas sensível". Isso é a experiência estética. Mas não está essa experiência próxima da experiência religiosa no encontro com o Sagrado? O patriarca lembrou que "acreditar significa confiar totalmente em Alguém e encontrar nessa confiança fonte de uma firmeza que dá segurança à existência.", abrindo ao sentido último, pois não é possível acreditar em Deus sem acreditar na vida eterna: "Deus é o nossa terra prometida. Ele será, para nós, o paraíso." Mas porque é que a fé é dada a uns e não a outros? O cardeal: "Será que Deus não lhes fala ou são eles que não o ouvem, porque o não reconhecem nos sinais da sua presença? Aqui tocamos no insondável enigma do Homem.
"O decisivo é a praxis. Eduardo Prado Coelho colocava justamente "esta espécie de norma intransigente: só vale a pena ser um crente se um crente é diferente do que seria caso não fosse crente. Será que muitos crentes podem passar incólumes a um teste deste tipo? Duvido".
Com razão, não suportava uma religião dolorista: seria necessário um Deus "tão exigente e caprichoso", criando em nós "a ideia de uma dívida infinita, que nos leva ao sacrifício?" O patriarca apontou para a cruz de Cristo como sinal supremo do amor. Não é o sacrifício pelo sacrifício que vale, mas o amor. O seu interlocutor estava de acordo, pois podia entender "o sofrimento que se oferece como prova de amor generoso". De qualquer forma, insistiu que "a Igreja parece muitas vezes estar mais do lado do sofrimento do que do prazer, do sacrifício do que da alegria." Ela, que tem vindo a assumir "um papel político libertador e pacificador", criticando, por exemplo, os excessos do capitalismo, mantém uma rigidez incompreensível em relação à interrupção voluntária da gravidez, à homossexualidade, ao papel da mulher, ao celibato dos padres, aos anticonceptivos, às relações pré-conjugais, ao divórcio, ao "assustador aumento do consumo de drogas leves e pesadas".
O patriarca respondeu que "a sexualidade vivida fora de uma relação de amor, íntimo e generoso, afasta-se da fonte do seu sentido pleno". Não excluiu que as mulheres possam vir a ser chamadas ao ministério sacerdotal. O celibato "é uma opção que, na sua génese, tem a marca do eterno e do definitivo". Quanto à expressão solitária da sexualidade ou à homossexualidade, "tratamos com respeito e amor, como o próprio Deus, aqueles que as vivem, mas não as podemos considerar uma boa expressão da sexualidade."
Mas Eduardo Prado Coelho tinha razão, quando disse que "a Igreja não pode optar por ignorar ou condenar em bloco, em nome do que seria a decadência dos tempos e a barbárie contemporânea. A Igreja tem de mostrar como intervir nestes problemas delicados para ajudar cada um no seu próprio caminho".
Logo na primeira carta, colocou o dedo na ferida do nosso tempo: "a perda do sentido trágico da existência." Quando reina a banalidade e o discurso religioso não prescinde da "tralha", associada à superstição e ao medo, "que os poderosos exploram", apaga-se o fundamental: "A experiência íntima do desconhecido em nós e fora de nós", o Mistério do Ser.
Texto daqui.

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