quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Uma opinião com senso

Em vez de Salomão

05.12.2007, Rui Ramos, Público

Há já não sei quanto tempo que os jornais e a televisão nos vão dando conta da história da criança a que os observadores mais imparciais dão dois nomes (Esmeralda/Ana Filipa). Como tudo o que neste país passa pelos tribunais, tornou-se uma saga infindável e agitada, com sensações a um ritmo regular, desde o célebre episódio da "prisão do sargento". Já quase toda a gente falou do caso, geralmente para tomar partido. E a história dos pais "afectivos" a defender a criança contra a tardia reclamação de um estranho teve mais sucesso do que a outra história possível: a do pai "biológico" a tentar recuperar a paternidade ilegalmente usurpada por dois estranhos. Sempre que os tribunais contrariaram essa preferência, houve indignação e concluiu-se mais uma vez que "não há justiça em Portugal". Num momento em que a poeira assentou temporariamente, talvez valha a pena - com o devido respeito por todas as pessoas afectadas - deixar algumas notas sobre o que esta história diz de nós. A situação é das mais antigas do nosso imaginário. Duas pessoas reivindicam a paternidade de uma criança. Como saber quem a merece? Como ser justo? Muito antes dos testes de ADN, pareceres psiquiátricos e sondagens de opinião, o rei Salomão recorreu a um truque que, durante alguns séculos, ilustrou a sua sabedoria. Há muito tempo, porém, que a "justiça" não é sinónimo, para nós, de nos pormos à mercê de um sábio. Não acreditamos na sabedoria, porque o nosso sentido da igualdade nos impede de admitir que o próximo possa ser mais "sábio" do que nós. Acreditamos, em contrapartida, na determinação dos factos e na aplicação de regras objectivas. Preferimos ser casos previstos pela lei ou estudados pela ciência. E, quando a lei ou a ciência não chegam, preferimos a opinião da maioria, que não é de ninguém em particular. Não temos sábios. Temos juízes, "especialistas" e opinadores. Reconhecemos-lhe autoridade, não enquanto indivíduos, mas membros de corporações: os juízes nos tribunais, os especialistas devidamente credenciados ou integrados em instituições profissionais, e os opinadores competentemente sondados por empresas fiáveis, com ficha técnica. Eis as autoridades que tomaram o lugar de Salomão.Armados com o que diz a lei, explica a ciência e deseja a opinião, devíamos ter, sem precisar da sabedoria, a verdade à mão. Acontece que não temos. A lei tem várias interpretações. Pior: a lei pode ser mudada pelos legisladores. Nada, portanto, nos obriga a conformarmo-nos com ela, mesmo quando temos de admitir que o seu sentido é o que não nos convém. Quanto à ciência, já quase todos sabemos que consiste em controvérsia: o parecer de um especialista, com bibliografia, cura-se sempre com o parecer de outro especialista, com ainda mais bibliografia. E à opinião há muito que foi diagnosticada a característica de variar conforme a última notícia ou rumor. Nas nossas discussões invocamos a lei, a ciência e opinião com abundância. Mas o que é que decisivamente colocamos no lugar da sabedoria? A nossa disponibilidade e capacidade para nos emocionarmos. Gostamos de nos exaltar, de tomar partido, porque, quando nos exaltamos e tomamos partido, tudo parece finalmente simples e óbvio, como raramente é do ponto de vista da lei, da ciência, ou da opinião. Este regime de uma verdade sentimental, exercido através da expressão veemente, leva-nos a desprezar tudo o que contraria as nossas tendências como uma monstruosidade: a lei, nesses casos, surge-nos como um capricho dos juízes, a ciência como um disparate mercenário ou despeitado de umas quantas batas brancas, e a opinião como o produto adulterado da proverbial "campanha orquestrada". Com a nossa indignação, conseguimos isto: estar sempre de bem connosco próprios. E a este respeito é curiosa a maneira como a maioria imaginou a criança que ninguém viu. Em todo este caso, ela serviu de tela para projectar certas ideias do que é ser humano. E essas ideias dizem-nos que podemos ser tudo, isto é, tomar qualquer "identidade", desde que devidamente "educados". Sem natureza própria, somos coisas extremamente frágeis. Por isso, o "afecto" vale mais do que o "sangue". Recusando ser tratados como "propriedade" de outros, não nos importamos de ser considerados "doentes", a precisar de ser protegidos contra todos os conflitos e tensões. O nosso interesse e o nosso direito esgotam-se no nosso "bem-estar". É isto que importa.Salomão propôs-se cortar uma criança ao meio para descobrir a verdade. Nós preferimos cortar a verdade ao meio para imaginar uma criança.
Historiador

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