domingo, 3 de janeiro de 2010

«O Verbo For», de João Ubaldo Ribeiro

Um dos nossos leitores enviou-nos esta saborosa crónica de João UbaldoRibeiro (na foto), sobre o ensino da língua portuguesa, Prémio Camõesde 2008. Foi no Brasil, mas podia ter sido em Portugal. A crónica foipublicada no jornal "O Globo" (e noutros jornais) na edição de 13 desetembro de 1998 (domingo) e integra o livro "O Conselheiro Come",Edição Nova Fronteira, 2000, p. 20.
"Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou jácheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu edos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentidoantigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica degrande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentementeo condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora decontrole, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltaráao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falardo antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (aodicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade deDireito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francêsou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos docurso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada decruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassemdiretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quantopossível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latimeram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oralmuitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se oponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperávelpor qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latimera particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, paraassistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano EvandroBaltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino(dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia eleao entanguido vestibulando.
— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre oestômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar umacarreirinha em direção à porta da sala.
— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu paraouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi?Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou,chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando omestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral.Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele medeu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falaralguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show deportuguês e inglês. O de português até que foi moleza, em certosentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, medirigiu as seguintes palavras aladas:
— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeiraoração do Hino Nacional!
— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quasedeixa cair a xícara.
— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviuforam as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas queexistem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito:"quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor daEscola de Administração da Universidade Federal da Bahia e medesignassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinhafama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, eficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulosdiante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal denervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. Aprova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhasem voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntavao que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural deoutra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose.Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei notexto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser"quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é overbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deusquiser.
— Esse "for" aí, que verbo é esse?
Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo queresolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e meencarou sorridente.
— Verbo for.
— Verbo o quê?
— Verbo for.
— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vósfondes, eles fõem.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabadopassando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério daAdministração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá,ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertidodo que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deveestar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eutampouco fonho. Mas ele fõe."
"O Globo", edição de 13 desetembro de 1998

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