Texto do Cardiologista Pediátrico José Diogo Ferreira Martins
Publicado no "Público" de 12 de Dezembro de 2006
A “Questão do Aborto” em Portugal é uma história já adulta. Há mais de 20 anos, quando alguns dos actuais eleitores não eram sequer nascidos, a discussão centrava-se à volta do início da vida humana. Por um lado, os pró-vida argumentavam que esta começava no princípio, na concepção. Por outro lado, os pró-escolha defendiam que ninguém sabia quando começava a vida humana, e um “conjunto de células” nas primeiras semanas de gravidez não o era certamente. Os dados científicos eram escassos e havia um grande desconhecimento sobre o desenvolvimento do feto.
Há oito anos o primeiro referendo sobre a IVG (interrupção voluntária da gravidez em PPC, português politicamente correcto) mostrou uma clivagem entre a opinião pública e a publicada: Teve uma abstenção superior a 70% e o “não” ganhou.
Nos últimos oito anos assistimos a várias tentativas de colocar a questão do aborto na agenda política. O “flagelo do aborto clandestino” foi considerado argumento principal, apesar dos escassos e incompletos dados oficiais mostrarem um número reduzido de internamentos por complicações de aborto fora do quadro legal (1426 internamentos em 2004, 89% por aborto incompleto ou retido, apenas 56 infecções e ausência de mortalidade; dados da Direcção Geral de Saúde). Foi-nos repetidamente perguntado se queríamos “mandar as mulheres para a prisão”. Contudo, as poucas mulheres julgadas até hoje tinham todas abortado com mais de 10 semanas de gravidez e daí não resultaram penas de prisão. A eventual legalização do aborto até às 10 semanas “por opção da mulher” criminaliza-o a partir das 10 semanas e um dia, pelo que estas questões da humilhação, julgamento e eventual condenação se mantêm a partir daí.
A mãe deve ser compreendida e ajudada, mas não podemos desviar a nossa atenção da outra vida em questão, a do feto, que por ser frágil e indefesa, depende da nossa protecção. Porque actualmente, passados mais de 20 anos, já não pode ser dito que o feto não é vida, pois a ciência mostrou-o de um modo claro e comovente. Pode causar surpresa a alguns, mas é hoje consensual entre a comunidade científica que às 10 semanas (para aplicar o limite arbitrariamente proposto pelo actual referendo) o tal “conjunto de células” se encontra organizado de um modo que é impossível não ser reconhecido como um ser humano.
Avanços recentes na Cardiologia Fetal mostram que o desenvolvimento do coração ocorre entre as 3 e as 6 semanas de gestação, e que por volta do 20º dia este já bate. Entre a 8ª e a 9ª semana o coração está formado com as estruturas cardíacas ocupando já as posições e realizando as suas funções definitivas. Às 10 semanas o coração do feto assemelha-se muito ao coração adulto, quer externa, quer internamente. As mais delicadas estruturas cardíacas, como os milimétricos folhetos da válvula aórtica, estão formadas e vão continuar a sua maturação e diferenciação. Às 10 semanas, a função circulatória está estabelecida e só vai alterar-se após o bebé nascer, com a adaptação à respiração. O coração bate com regularidade e variabilidade, e a complexidade das funções sistólica e diastólica são comparáveis à dos adultos.
Sem estigmatizar as grávidas, antes acolhendo-as e aos seus bebés, é nosso dever como profissionais de saúde tornar as “barrigas transparentes” de modo a ajudar os Portugueses a compreender que lá dentro está uma pessoa, que, se tiver 10 semanas de gestação tem um coração que bateu 870 vezes durante a leitura deste artigo.
quinta-feira, 4 de janeiro de 2007
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