Texto escrito pela Doutora Assunção Cristas em http://www.bloguedonao.blogspot.com/
Por que "Não"
Muito se tem escrito para defender o “não” e o "sim". Normalmente são visões mais ou menos parcelares e muitas vezes em tom de crítica ou de resposta a provocações. Falta por vezes uma visão de conjunto, mais racional e menos inflamada. Do lado do "sim" essa visão foi apresentada por Daniel Oliveira num post de 16 de Dezembro que tantos comentários mereceu na blogosfera. Daniel Oliveira apresentou de uma maneira estruturada, clara e serena, os argumentos a favor do “sim”. Este texto foi motivado por esse post e o meu objectivo é explicar com clareza, simplicidade e serenidade as razões que me fazem votar "não" e que creio correspondem às da generalidade das pessoas que defendem o "não". Obviamente que não esgota o tema e não aprofunda todos os seus aspectos (e, ainda assim, as minhas desculpas pela dimensão). É apenas o meu contributo para um debate que ser quer sério e esclarecedor.
O ponto de partida deve ser, mais uma vez, a pergunta do referendo:
«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizados?»
Parto também do pressuposto de que a generalidade das pessoas, votantes do “não”, do “sim” e indecisos, são contra o aborto e partilham genericamente dos mesmos valores. Distinguem-se, no entanto, quanto a saber se a despenalização do aborto é um meio adequado para diminuir o aborto, para promover a maternidade e paternidades desejadas e responsáveis, para construir a igualdade social, assente no respeito inalienável pela dignidade da pessoa humana.
Por isso, a minha preocupação é, sobretudo, explicar em que medida o voto “não” é o mais adequado ao alcance dessas finalidades.
I. O regime jurídico actual e o futuro regime se o “sim” ganhar
1. A lei actual
Não é demais explicar que actualmente a lei permite a prática de aborto. Permite em três casos: perigo de vida ou risco para a saúde física e psíquica da mãe, gravidez decorrente de violação da mãe, malformação e inviabilidade do embrião.
A lei em vigor não ignora o valor da vida humana e por isso contempla três casos que pela sua gravidade podem justificar a eliminação dessa vida humana. Ou porque está em causa a manutenção de outra vida humana – a da mãe –, ou porque a gravidez decorreu de um acto de violência contra a mãe, pelo que não só não faz sentido onerar a mãe com a responsabilidade de manter a gravidez, como se entende que é uma violência excessiva contra a mãe obrigá-la a manter tal gravidez, ou porque entende que é excessivamente oneroso para os pais obrigá-los a ter uma criança que antecipadamente sabem que será deficiente. É possível, mas julgo que pouco convincente, tentar justificar estes dois últimos casos também numa óptica do interesse da futura criança.
Independentemente de se concordar ou não com a lei vigente, percebe-se que ela assenta com clareza na necessidade de compatibilizar valores conflituantes com valor sensivelmente igual (v.g., a vida da mãe ou a vida da criança) ou, senão aproximado, pelo menos justificável nos outros casos.
Não se pense, no entanto, que fora destas situações uma mulher que pratique um aborto será inevitavelmente condenada numa pena de prisão. Não é assim. A condenação penal só ocorre quando, para além de estarem reunidos os pressupostos previstos na lei existe culpa de quem pratica o crime. Como acontece relativamente a qualquer crime, também ao crime de aborto é aplicável a parte geral do Código Penal, que contempla causas importantes de exclusão da ilicitude e da culpa. Por isso, a lei já protege as situações mais dramáticas de que tanto se fala. Por exemplo, uma mulher que é coagida à prática do aborto seguramente não será condenada, tal como provavelmente não será uma mulher numa situação de grave precariedade financeira provavelmente. É o que decorre da aplicação da lei penal.
Mas já uma mulher que, livre e esclarecidamente, com informação suficiente sobre como evitar uma gravidez, pratique o aborto, porventura de forma reiterada, como meio de contracepção, será condenada. E bem, a meu ver.
2. A pergunta do referendo
Se traduzirmos a pergunta do referendo por linguagem mais corrente teremos que até às 10 semanas basta o pedido da mãe para que o aborto, efectuado num estabelecimento de saúde legalmente autorizado, seja conforme à lei portuguesa. A mãe não precisa de invocar qualquer razão para justificar o seu pedido, basta querer o aborto. A mãe passa a ter total disponibilidade sobre o fim ou a continuação daquela vida. Sozinha.
Não estamos, por isso, a falar:
- de aborto livre depois das 10 semanas;
- de aborto na sequência de violação da mãe;
- de aborto no caso de malformação ou inviabilidade do embrião;
- de aborto na situação de risco para a saúde física e psíquica da mãe.
Estamos a falar da permissão incondicional para a prática do aborto até às 10 semanas.
Isto significa que:
- a generalidade dos casos que foram a julgamento por prática de aborto continuarão a ir a julgamento;
- até às 10 semanas não é pedido qualquer esforço de compatibilização entre interesses conflituantes.
3. A mudança radical
A esta passagem de um modelo para outro chama-se liberalizar (ou regular, se quiserem, só porque não se permite que o aborto seja praticado em qualquer lugar, sendo que regular pressupõe a licitude da conduta que se regula).
Não se trata apenas de excluir a aplicação de uma pena, de modificar uma previsão penal, continuando o aborto a ser configurado como um acto ilícito, ou seja, desconforme ao direito, embora com outro desvalor (por exemplo, administrativo ou civil). O aborto até às 10 semanas deixa de configurar um acto ilícito. A palavra mais adequada para explicar esta transformação é liberalização. Um acto que era entendido como comportando uma contrariedade à ordem jurídica passa agora a ser conforme a essa ordem jurídica.
Ao contrário do que acontece com a lei actual, caso o “sim” ganhe, deixará de haver qualquer necessidade de encontrar uma justificação plausível para a prática do aborto.
Tal traduz-se numa profunda desarmonia do próprio sistema jurídico. Basta pensar que um simples furto de um telemóvel é um crime, enquanto que a eliminação de uma vida humana, sem qualquer justificação para tal, deixará de ser.
II. Paradoxos da pergunta do referendo
1. As 10 semanas
A pergunta do referendo coloca o limite para a prática livre do aborto nas 10 semanas. Dizem os adeptos do “sim” que algum limite teria de haver e este parece ser razoável: dá tempo suficiente à mãe para decidir e não é tão tarde que porventura se torne chocante (“aos seis meses de gravidez não há dúvida que há um crime!”).
Independentemente do debate científico, há um dado que ninguém discute: às 10 semanas há uma vida que deve ser qualificada como humana. O embrião está essencialmente formado. Também não se discute que essa vida vai obedecendo a transformações ao longo da gravidez. O que se pode discutir é se a diferentes níveis de desenvolvimento deve ser associada uma diferente protecção jurídica e que etapas podem ou devem marcar essa diferença.
Que critério deverá ser adoptado? O da formação do coração? Do sistema nervoso central? Da maturação do sistema respiratório? Da autonomia do embrião em relação à mãe (“viabilidade”)? Da capacidade de alimentação com autonomia?
As transformações por que o embrião passa são no sentido da sua evolução, do seu aperfeiçoamento, não alteram a sua natureza. Não há dúvidas que o embrião evolui entre as 10 e as 38 ou 40 semanas, mas também ninguém nega que a criança evolui entre o primeiro e o segundo ou o sétimo ano de vida.
Todos os critérios têm falhas e essas falhas são insuperáveis, porque não são alicerçadas em aspectos profundos da natureza humana da vida do embrião, mas em elementos mais ou menos artificiais e de conveniência. Não se deve estabelecer uma barreira só porque “é o tempo razoável para a mulher pensar”. Até porque se nada há de mais profundo, também nada garante que hoje sejam as 10 semanas e amanhã as 16 ou as 20. Aliás, tal parecer ser a mensagem subliminar do cartaz pelo “sim” que alude à humilhação das mulheres julgadas. Sabemos que os processos judiciais trataram de abortos praticados muito, muito, para além das 10 semanas de gravidez. Portanto, ou o cartaz mente descaradamente, porque retrata uma realidade que continuará a acontecer, ou então está, subliminarmente, a promover antecipadamente uma extensão do prazo das 10 semanas.
2. A irrelevância do pai
A pergunta do referendo esquece o pai. Parece que, de repente, não é preciso gâmeta masculino para que se forme o embrião. Tudo depende da mãe. Dirão os defensores do “sim” que tal dado é incontornável, a natureza assim o fez, a barriga é da mãe e só ela pode e deve ter a última palavra.
Não há dúvidas que a barriga é da mãe, mas também não está em causa a barriga da mãe, mas sim algo que vive nessa barriga e, indiscutivelmente, precisou da contribuição do pai. Dirão que o argumento é reversível: então e no caso de o pai querer o aborto e a mãe não o desejar, como decidir? Parece-me no mínimo razoável entender que o que foi feito por dois só poderia (em hipótese) ser desfeito por dois. Se é verdade que a gravidez não se faz sem a mulher, também é verdade que também não se faz sem, pelo menos, algo proveniente do homem. O acto reprodutivo não é a manutenção da gravidez, é o acto que conduziu à gravidez, por isso não é aceitável o argumento de que negar a última e exclusiva palavra à mulher é negar todo o seu papel no acto reprodutivo.
Dizem-nos os estudos que numa percentagem muito elevada de casos a mulher aborta por pressão do futuro pai da criança. Mas nem todos os casos são assim. Nem sempre os pais são instigadores do aborto. Também há pais que desejam ter os filhos, eventualmente contra a opinião das mães. Será que nestes casos é razoável a mulher decidir-se sozinha pelo aborto? Será que ao pai não deve ser reconhecido nenhum direito a ter a criança?
Compreende-se mal a omissão do pai. Aliás, é mesmo possível questionar se tal omissão não se traduz numa verdadeira inconstitucionalidade.
3. Os estabelecimentos de saúde legalmente autorizados
Quando a pergunta do referendo limita a despenalização aos casos de aborto praticado em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, fá-lo com o objectivo de combater o aborto de “vão de escada”, de dar condições de higiene e segurança às mulheres que abortam. Entende o “sim” que esta solução se impõe não só por razões de saúde pública, mas também por razões de elementar justiça social, porque são precisamente as mulheres mais carenciadas que recorrem ao aborto clandestino. Mantendo a penalização para o aborto clandestino e liberalizando o aborto feito no sistema de saúde a questão ficaria resolvida.
Há pelo menos duas objecções sérias a esta projecção.
Em primeiro lugar, o que fazer se a mulher, por razões diversas (por exemplo, evitar a exposição social, particularmente relevante em meios pequenos) decidir fazer um aborto na clandestinidade? Tal aborto constituirá a prática de um crime e deverá ser sancionado em conformidade? O dito “estabelecimento de saúde legalmente autorizado” é suficiente para arredar grosseiramente o princípio da igualdade? O acto não é o mesmo? O efeito não é igual? Lembre-se que no caso tantas vezes referido de adolescentes que engravidam e que escondem aos pais tal facto, recorrendo ao aborto, é altamente improvável que se dirijam a um centro de saúde para colocar o problema, porque, sendo menores e estando a cargo dos pais, estes terão de ser chamados. O que fazer nestes casos? Há uma inevitável contradição nesta consequência do “sim” à pergunta do referendo. Não só a mulher fará o aborto em condições que não serão as melhores como comete um crime. Dirão os partidários do “sim” que o objectivo é trazer as mulheres para o sistema de saúde e que manter a penalização para o aborto feito na clandestinidade é uma pressão adicional para que tal aconteça. Duvidamos que assim seja e nisso consiste a segunda objecção.
É altamente duvidoso que a abertura das portas do sistema nacional de saúde (ou melhor, das clínicas privadas convencionadas com o sistema nacional de saúde) para a prática do aborto seja a maneira mais eficaz de combater o aborto clandestino e as consequências nefastas que traz para a saúde da mulher.
Os dados de países que liberalizaram o aborto mostram que o aborto clandestino não acaba nem diminui drasticamente. As pessoas continuam a preferir resolver discretamente os seus problemas a recorrer aos sistemas de saúde.
III. Liberdade de decisão e responsabilidade individual
1. Só há liberdade quando há opção
Em 1998 o “sim” cerrava fileiras e usava como palavras de ordem o direito ao corpo, o direito à liberdade da mulher, o direito à opção. Hoje o “sim” moderou o discurso, mas continua a entender que à mulher deve ser dada a total liberdade quanto à manutenção ou não da gravidez.
Só há verdadeira liberdade quando há opção. Quando a mulher for confrontada com uma solução viável para os seus problemas. Ora a lei que se pretende fazer passar não confere nenhuma opção à mulher: não lhe diz “se quiser ter a criança, então ajudamos desta e daquela maneira”. Há actualmente diversas instituições (muitas nascidas depois do refendo de 98) que dão esse apoio, porventura ainda escasso, dirão, mas alguma coisa certamente. O que pretende o Estado fazer? Até agora só sabemos que pretende dar condições para as mulheres praticarem o aborto, seja nos seus hospitais (improvável, dada a urgência da intervenção), seja em clínicas privadas a expensas do Estado (solução mais realista). Não há nenhuma opção oferecida à mulher, pelo contrário, há uma facilitação do aborto, um “empurrão” para o aborto, como se fosse panaceia para todos os seus males.
Aquilo que é visto por muitos como uma conquista da mulher, como um direito que ela passará a ter, também pode ser olhado como um tremendo fardo. A mulher estará mais pressionada do que nunca, pois, independentemente da pressão familiar ou social num ou noutro sentido, é a ela que compete a decisão final. Com isso viverá, bem ou mal.
Não creio que uma decisão profundamente angustiante e tomada num contexto de extrema fragilidade e muitas vezes pressão externa possa ser entendida como uma decisão livre, ponderada, cuidada, como os defensores do “sim” querem fazer crer. Precisamente por entender que essa decisão é altamente condicionada defendo a aplicação das causas de exclusão da culpa previstas na parte geral do Código Penal.
A pergunta do referendo não deixa de ser chocante quanto a este ponto. Ao deixar a mãe sozinha com a sua “escolha” está porventura a onerar mais do que a libertar. Onde os defensores do “sim” vêm liberdade, eu vejo pressão e desrespeito pelos sentimentos e pela dignidade da mulher. Claríssimos são os estudos que mostram os imensos traumas que permanecem depois da prática do aborto. Isso, o aborto feito em condições de higiene não resolve.
2. Há total liberdade até existir outro ser
Os mais acérrimos defensores do “sim” deixaram cair as máximas do “direito ao corpo” omnipresentes em 98 para adoptarem uma postura bastante mais moderadas e estrategicamente orientada à captação do voto indeciso. É compreensível.
Mas percebe-se que é uma tendência nacional. Basta dar uma olhadela nas associações internacionais de defesa do aborto para perceber que esse é um aspecto central na argumentação pró aborto: o direito da mulher a viver a sua vida sexual com liberdade, o direito a dispor do seu corpo e não suportar uma gravidez indesejada, a conduzir com total liberdade a sua vida presente e futura.
Entre nós, a tónica não vai para o “direito ao corpo”, mas para o “direito à opção”, o “direito a decidir”, o “direito a escolher”. Ouve-se com frequência que cada um sabe da sua vida, que ninguém se deve meter na vida dos outros, que ninguém como a mulher para saber se tem condições psicológicas e materiais para ter um filho, que os defensores do “não” querem impor aos outros determinada maneira de ver as coisas.
Defendo, como a generalidade dos defensores do “não”, que a mulher tem total liberdade para fazer as opções que entender quanto à sua vida sexual. Apenas não tem total liberdade para destruir um ser humano que não lhe pertence, que não é parte do seu corpo, que foi gerado também por outra pessoa.
Existe total liberdade, sim, mas até existir outro ser humano, ainda que numa fase precoce do seu desenvolvimento. A vida humana deste embrião merece também protecção jurídica.
3. Liberdade implica responsabilidade
A vida em sociedade e, naturalmente, o direito, porque está em dinâmica permanente com a sociedade, entendem a liberdade individual intimamente ligada à responsabilidade, também ela individual. As pessoas são livres na sua actuação, mas também são responsáveis por ela. Esta responsabilidade pode ocorrer aos mais diversos níveis (como penal, contra-ordenacional, civil) e pressupõe por regra que o acto tenha sido realizado livre e esclarecidamente.
Também todos sabemos que a liberdade de cada um, tantas vezes sedimentada em direitos, interliga-se com a liberdade dos outros a ponto de muitas vezes direitos de pessoas diferentes entrarem em conflito e obrigarem a uma composição desse mesmo conflito. No aborto há pelo menos direitos de duas pessoas diferenciados dos direitos da mulher: o direito do embrião e o direito do pai. A mulher tem todo o direito a prevenir uma gravidez indesejada e deve fazê-lo activamente, mas a sua liberdade nessa determinação esgota-se quando a gravidez ocorre. Nasce a responsabilidade pelos actos, pelas opções, quer tenham ou não sido realizados livre e esclarecidamente. Porque neste caso há outros direitos conflituantes de valor superior.
Quanto a este ponto não tenho dúvidas: faça-se tudo para evitar gravidezes indesejadas, mas quando elas ocorrem faça-se tudo para as apoiar. A partir do momento em que há uma vida humana em desenvolvimento, então os meios de contracepção já não serão adequados, por extemporâneos. E o aborto não deve ser visto como um último recurso para pôr termo à gravidez indesejada.
Não se pode falar de um direito da criança a ser desejada e amada, de um futuro direito à felicidade, quando não se reconhece um direito anterior a nascer. Não é possível a ninguém, com toda a segurança, garantir que certa criança vai ou não ser feliz. Não parece razoável sustentar o aborto com base numa mera expectativa de futura infelicidade da criança. Entra-se então numa lógica muito perigosa: a de que mais vale um aborto a uma criança não desejada ou uma criança para qual os pais não possuem os meios considerados aceitáveis de subsistência. E que meios são esses?
IV. Responsabilidade da sociedade e do Estado: promoção da igualdade social através do aborto?
Os defensores do sim entendem que o aborto é um instrumento adequado à promoção da igualdade social, que com o regime vigente há um direito dos pobres e um direito dos ricos.
Em primeiro lugar importa dizer que o direito é o mesmo, que um aborto praticado por uma portuguesa em Espanha é crime tal como um aborto praticado em Portugal (o nosso Código Penal contém uma regra que prevê a sua aplicação aos casos do chamado “turismo criminal”). Se é verdade que quem faz o aborto em Espanha não é apanhado e julgado, também é verdade que também tal não acontece a quem faz o aborto em Portugal. Repita-se que os casos que foram a julgamento não se enquadram no problema que debatemos, pois tratavam de gravidezes bem para lá das 10 semanas.
Em segundo lugar, e muito mais importante, interessa questionar como é que o aborto praticado num estabelecimento de saúde autorizado contribui para a igualdade social. É porque as condições na prática do aborto serão as mesmas nas classes ricas e nas pobres ou é porque assim as mulheres mais pobres não terão o fardo de criar crianças que não tinham planeado e desejado? Suspeito que os defensores do “sim” responderão “pelas duas razões”.
Ora o objectivo do Estado não deve ser o de criar condições óptimas ou razoáveis para a prática do aborto, mas sim atacar as causas do aborto, com empenho e determinação. É uma questão de opção política, de prioridade de agenda, que aliás tão bem se articularia com outros problemas graves do país (como o envelhecimento da população; e veja-se o recente exemplo da Alemanha com a instituição de um subsídio generoso à maternidade).
Promover a igualdade social faz-se, em primeiro lugar, através da educação. Educação a todos os níveis, em todas as alturas da vida. Educação para uma vida livre e responsável, para uma vida sexual segura e um planeamento familiar sério. Já foi feita alguma coisa, acredito, está a ser feita alguma coisa, creio que sim. Mas pelos vistos não é suficiente. É preciso maior empenho. Assim seja, mas não se desista de ensinar as pessoas, um Estado que desiste de educar o seu povo é muito triste.
A promoção da igualdade social faz-se também através de políticas sociais de apoio aos mais carenciados, de apoio às famílias, de promoção e apoio da natalidade. Não se faz através do aborto. O aborto é o caminho fácil de um Estado e de uma sociedade pouco solidários. É mais fácil pagar 500 euros por um aborto e eliminar um problema social do que ter a preocupação e o cuidado em ajudar a mulher para que possa criar o seu filho ou, caso de todo não queira, em encaminhar a criança para a adopção.
Também para a sociedade civil parece ser mais fácil promover o aborto do que apoiar a maternidade. Seguramente que, de um ponto de vista estritamente económico e operacional (na realidade acredito que em muitos casos assim não seja), uma empresa preferirá pagar um aborto a uma funcionária a arcar com o custo da maternidade. Aliás são conhecidas as pressões, directas ou indirectas, de tantos empregadores para que as suas funcionárias pratiquem um aborto.
Há trinta anos quando se falava de liberalização do aborto, o contexto científico, social e cultural era totalmente diferente. A contracepção estava no princípio, o objectivo central era a libertação sexual da mulher. Hoje a contracepção está difundida e mais poderá ser feito nesse nível, a mulher libertou-se sexualmente e se naqueles tempos o aborto pode ter tido importância, hoje não há razão para ter. A mulher liberta-se quando livre e responsavelmente decide ter ou não ter família e planeia essa família, seguramente não se liberta quando pratica um aborto. Pelo contrário, sabemos que se enreda em profundos sentimentos de culpa e em traumas mais ou menos duradouros.
O Estado e a sociedade civil têm o dever de não optar pelo mais fácil, de não desistir do caminho mais dignificante para as mulheres e para a sociedade. Têm o dever de educar, acolher e ajudar, não têm o direito de eliminar.
Dizem os defensores do “sim” que o Estado não legisla à frente do seu tempo, mas não só esse ponto de partida é altamente discutível como neste caso legislar no seu tempo é perceber que não estamos há 30 anos atrás e por isso menos razões há para liberalizar o aborto. A lei não é apenas reflexo da sociedade é transformadora da própria sociedade. Liberalizar o aborto é promover a transformação num sentido muito negativo, num desvio imenso do percurso civilizacional de promoção da dignidade da pessoa humana trilhado até aqui.
VI. A diferença entre hoje e amanhã se o “sim” ganhar
É sempre arriscado fazer juízes de prognose, quanto mais não seja porque um dia sempre poderei constatar que não tinha razão. No entanto, acho que vale a pena fazer este exercício, que corresponde à minha convicção mais profunda.
1. A diminuição do aborto clandestino?
Não é claro que o aborto clandestino diminua significativamente. Os estudos demonstram que o aborto aumenta. Dizem os defensores do “sim” que é um argumento falacioso, que os abortos passam é a entrar nas estatísticas.
Pergunto quem sabe os números, sérios, do aborto clandestino em Portugal. Se consultarmos, por exemplo, as estatísticas da justiça, que nos dão números sobre a criminalidade registada pelas polícias vemos que não passam de 30, 40 ou 50 por ano. Claro que isto é pouco, não traduz o fenómeno. Concordo. Depois há os números, baixos, do sistema nacional de saúde, que registam entradas de mulheres com complicações resultantes de abortos clandestinos. Mas também é pouco, dirão. A verdade é que não foi feito um estudo sério para apurar o problema do abordo clandestino em Portugal. Porventura por falta de coragem política de ambos os lados…
Não sabemos, pois, qual será a extensão do fenómeno depois de uma liberalização. Duvido, no entanto, que haja uma redução drástica do aborto clandestino. O que sabemos é que a liberalização gera a convicção de licitude do aborto e não é, seguramente, um meio eficaz para o combater.
2. A desresponsabilização do Estado e o enriquecimento das clínicas de abortos
O Estado vai suportar os custos do aborto e sentir-se confortavelmente desresponsabilizado. Claro que vai continuar a tentar alguma coisa na educação sexual e no planeamento familiar, mas quase aposto que sem extraordinário empenho. Afinal os recursos são escassos, não chegam para tudo, e já paga os abortos…
As clínicas privadas, essas sim, vão florescer em recursos.
3. A desresponsabilização da sociedade
A sociedade estará confortavelmente desresponsabilizada, porque, em última análise, haverá sempre maneira de evitar filhos indesejados. Com toda a propriedade poderá dizer “só tem filhos que os quer (ou quem permitiu que nascessem)”, pelo que também o apoio que se espera da sociedade civil não é muito. A solidariedade, já escassa, escasseará ainda mais. “Se não podem ter filhos, que não os tenham, o Estado até permite e paga os abortos!”
4. A maior solidão das mulheres
As mulheres ficarão ainda mais sós, na sua decisão, na sua consciência, sem sequer poderem invocar a ilegalidade do aborto quando são pressionadas para o fazerem. Longe de estarem mais acompanhadas, estarão condenadas a uma decisão dramática, individual, incentivada pelo Estado e pela sociedade, que se juntam às já habituais pressões de namorado, companheiro, marido, pais…
5. A paulatina banalização do aborto
Depois de uma primeira fase, é provável que o aborto passe a ser encarado com alguma naturalidade, como um último recurso, porventura, mas sempre disponível, acolhido pela sociedade e pelo direito. Enquanto hoje quase todos são contra o aborto, daqui a uns anos essa questão ter-se-á esbatido. O direito não reflecte apenas a ordem social, ele modifica-a. Até agora o aborto é entendido por todos como um mal a evitar também devido à tutela penal, forma mais grave que o direito encontra para explicar que reprova certa actuação. Quando esta tutela acabar a tendência será para deixar de entender o aborto como um mal.
A existir alguma discussão será porventura sobre o alargamento do tempo para a realização do aborto, porque uma vez aberta a porta, uma vez dito com todas as letras que o direito considera o aborto um acto lícito, então os limites são muito difíceis de explicar.
Hoje os defensores do “sim” até podem achar que é um bom meio para reduzir o aborto, amanhã ninguém mais estará preocupado com esse objectivo, simplesmente porque o aborto deixará de ser entendido como um mal.
O ordenamento jurídico muda definitivamente. A sua coerência e lógica sistemáticas ficam abaladas e as repercussões em problemas próximos não tardarão a surgir.
quinta-feira, 4 de janeiro de 2007
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