Saddam Hussein e a pena de morte por Anselmo Borges, Padre e professor de Filosofia
A gente vê e ouve, mas não acredita.
Não há dúvida de que Saddam Hussein foi um tirano cruel e bárbaro que violou de modo sistemático os Direitos do Homem, torturou e assassinou, numa história de horror. Mas legitima isso um julgamento duvidoso e uma execução apressada e, sobretudo, a sua filmagem e divulgação do vídeo na Internet? A missão messiânica imperial de impor pela força a democracia no Iraque contaria com esta obscenidade?
Esqueceu-se aquele preceito de Viktor Frankl, que estabelece o que não pode ser fotografado nem filmado: alguém a morrer, a fazer amor, a rezar.
Na boa tradição do País, pioneiro na abolição da pena de morte, o Governo português condenou a execução, pois considera "a pena de morte contrária à dignidade do ser humano". Na sua total oposição à pena de morte, seguiu textualmente a presidência finlandesa da União Europeia, que "se opõe à pena capital em todos os casos e em todas as circunstâncias".
Na Antiguidade, o direito do poder público de impor a pena capital - eliminação física do criminoso como consequência de determinados delitos - foi admitido como normal. Platão escreveu em As Leis que os criminosos incorrigíveis deveriam sofrer o castigo da pena de morte, servindo de exemplo para outros. Durante muito tempo, os senhores do poder arrogaram-se o direito de vida e de morte sobre os súbditos.
Séculos a fio, e ainda hoje em muitos países, manteve-se a pena de morte, também com o objectivo de prevenir e evitar outros delinquentes. Os defensores da pena capital apresentaram sempre como sua justificação dois tipos fundamentais de razões: a sociedade tem o direito e o dever de legítima defesa frente aos criminosos e, assim, com a morte, elimina na raiz o mal já existente e, ao mesmo tempo, educa exemplarmente e dissuade outros possíveis delinquentes.
A Bíblia, no Antigo Testamento, é pródiga no número de delitos passíveis da pena de morte: a idolatria, a blasfémia, a violação do Sábado, o homicídio, vários actos do domínio sexual... "Todo o israelita ou estrangeiro, residente em Israel, que sacrificar o seu filho a Moloc (divindade pagã), será punido com a morte." "Quem trabalhar no dia de Sábado será punido com a morte." "Aquele que ferir um homem até à morte deverá morrer." "Quem raptar um homem e o vender ou o retiver em seu poder deverá morrer." "Se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o homem adúltero e a mulher adúltera serão punidos com a morte." "Se um homem coabitar sexualmente com um varão, cometeram ambos um acto abominável; serão os dois punidos com a morte."
Jesus recusou a pena de talião: "Olho por olho e dente por dente." A Igreja não o seguiu nesta generosidade. Assim, na primeira edição do Catecismo da Igreja Católica (1993), podia ainda ler-se: "Preservar o bem comum da sociedade pode exigir que se coloque o agressor em estado de não poder fazer mal. A este título, reconheceu-se aos detentores da autoridade pública o direito e a obrigação de castigar com penas proporcionadas à gravidade do delito, incluindo a pena de morte em casos de extrema gravidade, se outros processos não bastarem." Entretanto, na sequência de duras críticas, houve uma reformulação deste artigo, o Vaticano tem pedido clemência para os condenados à morte e referiu-se concretamente à execução do ditador iraquiano, qualificando-a de "trágica".
A partir do século XVIII, levantaram-se dúvidas quanto à legitimidade da pena de morte, sendo clássico o manifesto histórico-jurídico sobre a sua ilegitimidade: Sobre os Delitos e as Penas, de C. Beccaria, obra colocada no Índice dos Livros Proibidos.
Desde o século XIX, impôs-se uma forte corrente abolicionista. Com vários argumentos. O Estado não tem o poder de tirar a vida. Trata-se de uma pena degradante e desumana. Dado ser uma punição irreversível, torna-se intolerável por causa do perigo de ser infligida a inocentes. Não há provas de que seja realmente dissuasora, diminuindo eficazmente o crime. Não tem em consideração a liberdade e a capacidade do Homem para uma regeneração e a reassunção da dignidade humana ferida.
Como disse Vergílio Ferreira, por ocasião do I Centenário da abolição da pena de morte em Portugal: "E acaso o criminoso não poderá ascender à maioridade que não tem? Suprimi-lo é suprimir a possibilidade de que o absoluto conscientemente se instale nele. Suprimi-lo é suprimir o Universo que aí pode instaurar-se, porque (...) a nossa morte é efectivamente, depois de mortos, a morte do Universo."
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