quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Referendo: Sim ou Não? - Uma questão de civilização

Para quem for perspicaz verá que eu já escrevi num outro blogue o seguinte:

O mundo é injusto quando ataca a Religião e as Igrejas, das mais variadas confissões religiosas, sem se informar, falando à boca cheia do que não conhece. Ele exige tudo, a um ritmo alucinante, que os cidadãos (fiéis) sejam juízes de problemas (ou deverei dizer dilemas?) éticos, que apelem ao voluntariado, à adopção, que sejam uma ponte na cessação de conflitos armados, que combatam a fome, a opressão social, que ajudem os refugiadas nos grandes fluxos migratórios, mas que os quer impedir de ter palavra na Democracia (participativa), em campos como o da pena de morte, o do aborto, o da manipulação genética, a Educação (sexual, por exemplo), o da Bioética. O mundo suplica que actuem contra os males da Humanidade, mas, se se prenunciam, prefere que se calem ou chama-os, indiscriminadamente, de "hipócritas que querem impor a sua moral", alegando a consciência pessoal de cada um. [Que consciência pessoal, começo eu a questionar-me, que também essa é (de)formada pela cultura.]

Gostei do texto do Cardeal Patrearca, por isso, o coloco aqui.


Referendo: Sim ou Não? - Uma questão de civilização

Segundo de 5 textos do Cardeal-Patriarca de Lisboa, a respeito do Referendo sobre o Aborto .

1. O facto de a Igreja Católica ser contra o aborto voluntário, em todas as circunstâncias, e devido à influência da doutrina da Igreja na definição dos parâmetros de moralidade, leva a opinião pública a considerar que esta disputa entre o “sim” e o “não” é um confronto entre a Igreja Católica e o resto da sociedade. A esta perspectiva dicotómica não escapam mesmo alguns defensores do “não”. Ora não me parece que esta seja a maneira mais correcta de situar o problema. Uma lei que permita a destruição da vida intra-uterina vai contra valores chave da nossa civilização. A defesa e a protecção da vida são um valor fundamental na estrutura de uma sociedade justa, onde o valor da vida humana é o principal fundamento da dimensão ética que deve inspirar toda a convivência em sociedade. Milénios de história e de evolução cultural, em que as religiões exerceram um papel significativo, levaram a humanidade a reconhecer, de forma progressiva, valores universais humanos, que não se impõem à sociedade por serem religiosos, mas por serem dados adquiridos da evolução cultural, na qual as religiões exerceram a sua influência específica.O judeo-cristianismo, logo no decálogo da Lei de Moisés, confirmou estes valores universais. No que à vida diz respeito, exprimiu esse valor cultural no preceito “não matarás”. No cristianismo, este 5.º mandamento da Lei de Deus, aprofunda-se com a exigência do amor fraterno. Esse é o principal mandamento da Lei: o amor de todo o seu semelhante. Como diz São João, “se alguém diz que ama a Deus e rejeita o seu irmão, é mentiroso” (1Jo. 4,20). Na moral católica, o valor universal do respeito pela vida, ganha a beleza e a exigência da caridade.Uma lei que permita a destruição da vida humana é um atropelo de civilização, sinal de desvio preocupante no conjunto de valores éticos que são a base das sociedades humanistas, tão arduamente construídas ao longo de séculos. Os autores e defensores da proposta legislativa que vai ser referendada em 11 de Fevereiro próximo encontram justificação para esta deriva cultural na possível dúvida sobre o momento em que começa a vida humana no seio materno. É uma dúvida chocante, no actual estado dos conhecimentos científicos sobre a vida intra-uterina.
2. Neste quadro civilizacional, defender o aborto voluntário significa uma de duas atitudes: ou se duvida acerca do momento em que começa a vida humana, ou se tem uma atitude de desrespeito pela vida. A questão do momento em que começa a vida humana é também ela uma atitude cultural. Na própria história do pensamento cristã, essa questão pôs-se. Alguns autores escolásticos, numa perspectiva dualista da união da alma e do corpo, defenderam que a infusão da alma se dava numa determinada etapa da evolução do feto. E nessa visão antropológica, só depois da infusão da alma se podia falar de vida humana. Semelhante a essa é, ainda hoje, a visão muçulmana da evolução do feto.Essa questão foi completamente ultrapassada pela Teologia e pelo Magistério. A alma está presente desde o primeiro momento do corpo e exprime-se nele e através dele. A alma não habita o corpo, anima-o e humaniza-o. Será que os defensores do aborto são “escolásticos”, do ponto de vista antropológico? Não deixa de ser curioso!Mas a palavra esclarecedora sobre esta questão é-nos dada pela ciência. A partir do embrião, toda a especificidade de cada ser humano está definida. É possível identificar, desde logo, o código genético e as etapas do crescimento estão caracterizadas. É uma vida humana, desde o início. Apoiar-se no carácter incompleto de cada etapa do crescimento, para justificar a interrupção desse mesmo crescimento, é incongruente. O homem é sempre um ser em construção e nenhuma imperfeição na realização de toda a sua potencialidade pode justificar a sua exclusão.
3. A atitude de desrespeito pela vida humana está, infelizmente, muito espalhada na sociedade. A violência, a exclusão, o assassinato indiscriminado, a própria pena de morte. Esta é uma luta em que a humanidade não pode esmorecer, pela defesa da dignidade e dos direitos fundamentais de todo o ser humano, o primeiro dos quais é o direito a viver e a ser protegido pela Lei. Passa pela educação, pelas leis justas e pela visão do homem e da sociedade que devem inspirar uma sociedade justa.Esta é, de facto, uma questão de cultura e de civilização, donde, a partir do respeito pela vida, deve emergir o sentido da grandeza da maternidade.

Lisboa, 14 de Janeiro de 2007
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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