"O aborto jamais pode ser “esterilizado” naquilo que não é, num qualquer nominalismo vazio. Quer se queira, quer não se queira, por muito que isso custe, o aborto é sempre a eliminação de uma pessoa humana não nascida, a destruição de uma vida sagrada.
Em termos jurídicos, pois que múltiplas outras abordagens seriam possíveis, este problema está indissociavelmente ligado à protecção da pessoa humana como princípio constitucional que é, em Portugal e em qualquer Estado de Direito. Este princípio implica que a pessoa humana, só pelo facto de o ser, exige o respeito do Estado, que a venera como fim último do Direito que produz, ao mesmo tempo vinculando-se à sua protecção nas diversas circunstâncias em que essa protecção se imponha.
A eminente dignidade da pessoa atribui-lhe, desde que começa a existir (e esse começo é hoje bem delimitado pela ciência), um núcleo essencial de poderes e deveres, dos quais o primeiro é o direito à vida. Por ele se há-de dizer não à guerra (mas sim à defesa e à segurança), à pena de morte, à eutanásia e, pelas mesmas razões, ao aborto livre.
Sem dúvida alguma que a incriminação das condutas se apresenta como um instrumento imprescindível, conquanto maximamente repressivo e por certo muito antipático, na defesa da juridicidade. Não é a única dimensão, porque é prioritária uma intervenção social que erradique, nas causas, este flagelo, tarefa dos políticos e das associações, e que apoie a maternidade e a filiação em qualquer circunstância. Mas isso não pode esconder a natural ilicitude penal do aborto, a qual significa que, para o Direito, a eliminação da vida humana intra-uterina é um mal muito grave, ao ponto de justificar a respectiva tutela neste plano. Pode, em concreto, este ser justificado ou desculpabilizado, como qualquer outro crime (por legítima defesa, estado de necessidade, etc…). Mas para quem acredita no Direito Natural não há volta a dar-lhe: se a violação da vida não fosse crime, o que então haveria de sê-lo?
Mercê da consideração de alguns circunstancialismos, têm-se divulgado a aceitação de algumas hipóteses-limite em que o aborto não deveria ser considerado como crime. Foi nesse sentido que, em 1984, se aprovou a primeira lei do aborto, no ano passado levemente retocada (1997). Seriam, para alguns, situações extremas, nas quais estariam em causa razões que eventualmente poderiam concorrer com a vida intra-uterina, prevalecendo mesmo sobre ela. De certo modo, ela procurou como que tipificar algumas causas de justificação privilegiadas pela lei (violação, perigo para a vida da mãe…).
A verdade é que, no presente debate sobre o aborto, nenhuma aproximação dessa natureza se pretende fazer. Tal como decorre da formulação que foi aprovada, vai simplesmente perguntar-se aos portugueses se aceitam a legalização do aborto livre. Nenhuma outra coisa está em cima da mesa.
É certo que a pergunta ainda integra outros aspectos, como o da limitação às 10 semanas de gestação e o da prática do aborto num estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Tudo isso não passa, no entanto, de pormenores que se desviam do fulcro do problema:
- O prazo de 10 semanas assume-se como irrelevante, porque nada acontece de especial nesse momento que altere, qualitativamente falando, a realidade que já existia, que é a da vida humana intra-uterina de um ser biologicamente individualizado;
- O facto de a operação de aborto ser feita num estabelecimento de saúde legalmente autorizado nada tem a ver com a realidade da eliminação da vida de um filho, já que apenas se relaciona com as condições de saúde em que tem lugar a operação do ponto de vista da mãe.
O aborto livre, por mais curto que seja o prazo para a sua execução e por mais cautelas que se tenham na realização dessa operação num estabelecimento de saúde, jamais se pode considerar admissível à luz da dignidade da pessoa. A razão é simples: porque a sua legalização implica aceitar que a dignidade da pessoa humana não nascida se perca; porque a sua legalização tem a consequência de a um ser humano – a mãe – se atribuir o “poder de vida e de morte” sobre outro ser humano – o filho que vai ser eliminado.
A civilização dos valores do Mundo de hoje fez-se paulatinamente, com pequenos avanços e alguns recuos, numa firme senda de dignificação do Homem. Através de muitas etapas, como a abolição da escravatura, a extinção da pena de morte ou a humanização das penas, fomos construindo um Mundo de princípios, em que a pessoa humana se apresenta, cada vez mais intensamente, no cume da Ordem Jurídica.
Esta não é só uma posição religiosa (cristã ou islâmica), pois se situa no domínio da mera humanidade. Não é só uma posição moral, muito menos de moral sexual, pois se fundamenta na mera existência da vida. E apela, decerto, à tolerância e ao diálogo, que não podem confundir-se com recusa ou renúncia aos valores.
A legalização do aborto livre – diferente de justificação ou desculpabilização de casos concretos – é a passagem de uma fronteira decisiva, representando um grosseiro recuo nessa protecção, que permite – como outrora na lei da selva – o domínio dos fortes sobre os fracos, dos que já estão na vida sobre os que vêm depois. Essa não é a sociedade humana que sempre idealizei e por que, esteja onde estiver e exerça os cargos que exercer, sempre pugnarei a título pessoal.
Acredito numa sociedade em que prevaleça a Solidariedade para com os mais fracos e os mais débeis, que por isso mesmo merecem a nossa protecção. Mais fracos e mais débeis no plano económico, pessoal, social e afectivo, no da exclusão como no da deficiência.
E há no Mundo pessoa mais frágil, mais indefesa e mais inocente do que um ser humano não nascido?
É certo. O referendo vai ser apenas um confronto de opiniões: contar a maioritária apura uma decisão política legítima, não define a verdade ética. Por outro lado, não se pode defender a vida sem veemência. Mas esta não deve gerar falta de respeito pelos adversários nem recusa de diálogo com os que honestamente julgam que outras soluções são melhores, os quais, evidentemente, podem estar em erro, mas não são criminosos ao dar voz à sua consciência. A criação de redes de diálogo é, mesmo num caso extremo como este – pela radicalidade do valor envolvido: a vida – a abertura de vias de respeito pela humanidade, de prática ética da tolerância – pelo pensar diferente, não pelos actos ilícitos – até de busca da verdade, que não é propriedade de nenhum homem ou grupo. Sejamos firmes mas humildes, sem cair no relativismo. Recordemos que, para todo o homem, o sumo critério ético é seguir a voz da consciência, recta e reflexiva, como já ensinou São Tomás de Aquino. E pratiquemos a palavra augustiniana no diálogo: “Amai os homens, matai os erros”. Combater com determinação as ideias erradas com respeito total por quem as defende é, neste caso, a forma de praticar o diálogo, assente na clareza das posições e no respeito pelo outro.
Inspiremo-nos no exemplo de Madre Teresa de Calcutá, cuja exortação final do seu belo hino Viva a Vida aqui procuramos cumprir: defender a Vida. Acompanhamo-la, na totalidade e sem medo de ser, na defesa do fundamental e no essencial, apodados de radicais, como ela foi. Não tenhamos medo de dizer como ela:
Viver a Vida
A vida é uma oportunidade, aproveite-a.
A vida é beleza, admire-a.
A vida é felicidade, saboreie-a.
A vida é um sonho, torne-o realidade.
A vida é um desafio, enfrente-o.
A vida é um dever, cumpra-o.
A vida é um jogo, jogue-o.
A vida é preciosa, cuide dela.
A vida é uma riqueza, conserve-a.
A vida é amor, goze-o.
A vida é um mistério, descubra-o.
A vida é promessa, cumpra-a.
A vida é tristeza, supere-a.
A vida é um hino, cante-a.
A vida é uma luta, aceite-a.
A vida é uma aventura, arrisque-a.
A vida é felicidade, mereça-a.
A vida é a vida, defenda-a.
António de Sousa Franco - Lisboa, 15 de Maio de 1998.
"In: Vida e Direito - Reflexões sobre um referendo, Cascais, Principia, 1998
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