segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Ler os outros...

NUANCES

Nuno Lobo Antunes, pediatra e neurologista apresenta as razões que, na sua consciência e face à questão que o próximo referendo coloca e que não dá espaço a soluções intermédias, dão a primazia à ilegitimidade ética do aborto.

Em última análise, é uma questão ética. Parece-me claro que o problema do aborto se coloca na existência de um conflito de interesse entre a mãe, e o seu filho em gestação. Presumimos que o interesse do embrião é que se desenvolva e nasça, o da mãe, que tal não suceda, porque iria causar dor ou dificuldade à sua própria vida. Quem vota a favor do aborto admite que o interesse da mãe é superior ao da criança, pensa de forma contrária o que vota “não”. Depois, claro, há as “nuances”. Como médico, Pediatra e Neurologista, fazem-me perguntas na esperança de que se possa encontrar na Medicina, ou na Ciência, o árbitro para esta questão. Esperança vã: este é um tema que nada tem a ver com a Ciência. O atributo da qualidade de vida humana não é estabelecido pelo médico, mas pelo político, sociólogo, filósofo ou entidade religiosa. Parece-me evidente que para o biólogo a vida se iniciou quando de uma célula nascem duas, e não compete, nem pode o médico, determinar a partir de quando se lhe atribui a dignidade humana. O que parece inescapável, é que se nada de anormal suceder, surgirá incontestável essa dignidade e seus direitos, sendo também insofismável que qualquer organismo, ao longo da sua evolução, é sempre um ser em mudança. Assim, a divisão entre embrião e feto, criança e adulto, é artificial, uma construção mental útil, mas apenas isso. As responsabilidades legais alteram-se no dia em que completamos 18 anos, mas o organismo não muda de forma sensível quando sopramos as velas. Por isso, não me perguntem a partir de quando se transforma um feto em uma pessoa. Quando consegue autonomia libertando-se do corpo que o alimenta? Mas seremos nós autónomos, quando a atmosfera que rodeia o mundo em que vivemos, e de que dependemos totalmente para a nossa sobrevivência é, no fundo, uma espécie de líquido amniótico que nos conserva e protege? Depois, é evidente, há as “nuances”. Citando Wendell Berry, são duas as questões centrais: é o aborto um assassínio? Se é, que espécie de coisa é morta. Claro que é uma morte, sendo aliás esse o objectivo declarado da intervenção. À segunda, que “coisa” é morta, respondem alguns: um embrião ou feto. Qual a diferença para o que a maioria das mães chama... um bebé? Se uma criatura que vive num útero é um ser humano vivo, e para já, inocente, que direito temos de o tratar como um inimigo? De resto, cada vez menos um desconhecido de quem podemos distanciar os afectos. A tecnologia médica, (ecografia, ressonância), ao fornecer imagens fiéis do embrião, ao revelar-lhe a face, torna-o um de nós. A morte de 100 000 homens numa província longínqua da China dói menos que a cruz na porta da tabacaria. Claro que há “nuances”. Confesso que me indignam alguns argumentos de um lado e de outro, que transformam uma questão séria, num debate do mais baixo nível. A ideia de que é legítimo abortar porque a “barriga” é da mãe, é indigente. A razão é simples, não se trata da barriga. Temos o direito de controlar o próprio corpo, mas implícito nesse direito é o dever de agir de forma responsável para com o corpo dos outros. Por outro lado, o embrião não surge de gestação espontânea, mas é resultado da actividade sexual dos pais, presumivelmente consequência de um acto voluntário, de consequências previsíveis. Quem vota a favor da interrupção voluntária da gravidez, admite que é legítimo, por assim dizer, comer o bolo e mantê-lo ao mesmo tempo. Quem é pelo “não” acredita que a responsabilidade, (e privilégio), por uma vida é consequência natural do “risco” da actividade sexual, que deverá ser assumido por quem maior de idade. Todos nós sabemos, ao ter um filho, que desistimos de parte substancial da nossa liberdade. Também entendo mal o coro de protestos dos que dizem que a despenalização aumentará a frequência de abortos. E se assim for? Se essa intervenção é considerada legítima e razoável, porquê temer o seu aumento de frequência? Essa preocupação só faria sentido ao presumir-se que é acto funesto e imoral, (mas então, não deverá ser punido?). A ideia de que a sociedade fecha os olhos, compreende e aceita o aborto, e de alguma forma o perdoa, porque todos nós conhecemos alguém de quem gostamos e que já o praticou, parece-me infantil. A sociedade também compreende a fuga aos impostos, ninguém cora por ter escapado ao IVA. No entanto, poucos pensarão que a fuga aos impostos deverá ser aceite, e, porque não, despenalizada. Depois, claro está, há as “nuances”. Há anos, interno ainda, vivi repetidamente uma das experiências mais marcantes da minha vida. Uma dúzia de mulheres aguardava, por vezes durante horas, de pernas bamboleantes no frio da mesa ginecológica, a “raspagem”. Todos sabíamos o que tinha acontecido. Razões várias: mais um filho a juntar aos muitos de quem se não podia cuidar, o namorado que jurava partir se a criança nascesse, a vergonha da família se a gravidez prosseguisse, tinham levado aquelas mulheres às “fazedoras de anjos”. Em condições miseráveis recorriam agora ao Hospital com infecções graves, restos sangrantes de abortos artesanais. A ginecologista, de cigarro ao canto da boca, um dos olhos fechados pelo fumo que o irritava, introduzia a colher de ferro na noite escura daquelas pernas abertas. O movimento de êmbolo trazia à superfície uma menstruação de Tsunami. Coágulos e tecidos de cor violácea, restos de gente que terminavam na alvura da compressa ou no cinzento do balde. Até se ouvir o ruído inesquecível do aço a ferir a nudez do músculo uterino, liberto, por uma vez, de lezírias vermelhas. A seguinte… A despenalização do aborto é uma questão ética, mas a moeda tem duas faces. Julgo saber de que lado está o Bem, mas não conseguiria ser o Juiz...”nuances”. PS: Amigos que leram o texto antes da sua publicação, julgaram-no ambíguo. Apenas creio que não é uma questão simples. Acredito que o melhor equilíbrio seria considerar o aborto ilegítimo mas não punível, enquanto a sociedade tudo faria para ajudar a mulher, (o casal), a levar por diante a gravidez. Na questão que o próximo referendo coloca, e que não dá espaço a soluções intermédias, vence, na minha consciência, a primazia da ilegitimidade ética do aborto.

Nuno Lobo Antunes, neuropediatra

Sem comentários: