1. As feministas cristãs queixam-se de que as cristologias, e até as obras mais rigorosas sobre o Jesus histórico, continuam a ser elaboradas como se as mulheres não existissem. Ora, se há um ponto no qual as narrativas evangélicas são inovadoras é, precisamente, pelo lugar que nelas é dado, por Jesus, à defesa das mulheres e pelo protagonismo que assumem nos momentos mais decisivos do seu itinerário.
Também a celebração da liturgia deste Domingo é comandada por um texto sobre dois tipos de mulher. Não é a primeira vez que elas surgem no Evangelho de Lucas. Uma prostituta entra em cena loucamente apaixonada por Jesus e ficará, para sempre, como símbolo das pessoas que o amor puro transformou até à raiz (Lc 7, 36-50).
Logo a seguir, outras são apresentadas como mulheres libertas – curadas de espíritos malignos e doenças – que acompanhavam o Mestre com os doze apóstolos, por cidades e aldeias: Maria chamada Madalena, da qual haviam saído sete demónios, Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes, Suzana e várias outras, que os serviam com os seus bens. Estas discípulas aparecem como financiadoras do projecto de Jesus (Lc 8, 2-3). De facto, seguem-no até ao túmulo e foram elas as surpreendidas pela ressurreição de Cristo. Serão também elas a evangelizar os apóstolos que, entretanto, tinham desertado (Lc 23, 24).
2. Nunca somos neutros na leitura de um texto. Há, certamente, limites para a sua interpretação, mas esta parte sempre de alguns pressupostos conscientes ou inconscientes. As narrativas evangélicas não escapam a essa condição. Além disso, carregam dois mil anos de leituras. Esta passagem já teve vários usos nas Igrejas cristãs. Serviu, de modo especial, no âmbito dos carismas da vida religiosa, para exaltar o primado da “vida contemplativa”, de mulheres e homens, sobre a “vida activa”.
A investigação da verdade e a contemplação da beleza eram sempre mais valorizadas do que as actividades exteriores, consideradas menos nobres, entregues ao que é passageiro em contraposição ao que é eterno.
Se este esquema respondia bem ao primado absoluto de Deus, tornava-se incapaz de interpretar a própria vida de Cristo. Tomás de Aquino, na sua cristologia, pergunta se não seria mais conveniente que Jesus se tivesse dedicado à vida solitária, à vida monacal, do que à intervenção na sociedade. A sua resposta não é simplista. Começa por reconhecer que a vida contemplativa em si mesma, não tendo em conta qualquer outra consideração, é melhor do que a vida activa que se ocupa de actividades corporais. No entanto, a vida activa, segundo a qual alguém, pregando e ensinando, dá aos outros a realidade contemplada, é mais perfeita do que a vida que só contempla, dado que tal género de vida só pode brotar de abundante contemplação. E foi essa que Cristo escolheu para si (ST III q. 40, a.1, ad 2). É melhor iluminar do que ser apenas um iluminado.
3. A distinção entre vida activa e contemplativa não deve, no entanto, ser desvalorizada, embora a vida activa possa ser fonte de contemplação. Bem-aventurados os que atingem um estado contemplativo no meio da agitação! A necessidade de cortar com o quotidiano, não só para o ócio e para o desporto, mas também para meditar e saber hierarquizar o que é importante e o que é secundário, é cada vez mais sentida. Quem não compreende isto arranja programas de fim de semana e de férias para aumentar o barulho.
Há, no entanto, uma outra leitura para o estranho diálogo de Jesus com Marta a propósito da insensibilidade de Maria para o serviço da casa. Marta tem de fazer tudo e Maria está sentada na conversa e, por ainda cima, é elogiada.
Em geral não se repara no seguinte: o que está em causa é uma revolução. É a mudança de estatuto que a mulher consegue na comunidade de Jesus. Ele cresceu numa sociedade na qual as mulheres só contavam para dar filhos e trabalhar. Eram uma propriedade do marido que as podiam repudiar por qualquer motivo e elas não podiam pedir o divórcio. Não havia rabinas nem escribas ou doutoras da Lei. No Templo e na sinagoga, estavam à parte.
Jesus fez delas discípulas do Evangelho. Acabaram por demonstrar mais ousadia e responsabilidade do que os homens. Maria representa a mulher discípula, aquela que escuta a palavra e a segue. Marta ainda é o tipo de mulher reduzida à “cozinha”.
Esta revolução não durou muito, salvo em casos extraordinários. No geral, voltou-se ao tempo anterior a Jesus.
Frei Bento Domingues, o.p.
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